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Era um final de tarde de setembro de 2011. Tinha chegado da firma e estava na janela do apartamento, cansado, olhando o movimento, e vi tudo acontecer:

Dois meninos numa bicicleta, em alta velocidade, passam do lado de uma senhora e zap, levam o cordão...

Mas deu ruim!
O moleque que vinha na garupa se desequilibrou depois de pegar o cordão e caiu da bicicleta, se estatelando no chão.

Queda feia.

Vi tudo da janela do 6º andar, inclusive a galera que imediatamente correu para pegar o meliante.
Também vi que era um menino, não devia nem ter 15 anos, no máximo.

O fato de ser uma criança não impediu que a macharada chegasse descendo a porrada. O primeiro que chegou veio logo no chute, e da janela eu ouvi os gritos de dor.
Juntou mais gente e o menino ia ser linchado, aí nem pensei muito: peguei a chave de casa, a carteira da OAB e desci voado.

Quando cheguei lá, vi que os caras se divertiam batendo pouco no menino, talvez cientes da fragilidade dele, mas batiam.
Não ia adiantar conversar, pedir bom senso aos meus nobres vizinhos, então fiz a única coisa que podia: me abracei ao moleque, hehehe

Na hora, os caras pararam de bater e começaram a argumentar: mas doutor... doutor para lá e para cá, rs (nesta hora o doutor serve para algo).
A surra parou, os vizinhos revoltados, me olhando com cara feia.

Em resumo: o menino tinha 11 anos, caiu de bicicleta e ficou para trás. Tava morrendo de medo de morrer e pediu pra eu não deixar ele sozinho.

A única pessoa que tomou partido dele, comigo, foi a assaltada.
A mulher que tinha sido assaltada dizia:

- Gente, deixa o menino ir. Ele tem a idade do meu neto, esse cordão não vale nada...

Mas os vizinhos já tinham chamado a PM, então vamos esperar.

E o menino lá, sentado no meio fio, quase abraçado às minhas pernas.
Acontece que a PM não veio. 10 minutos, 15, 20... meia hora, e a PM não chegou.

Mas chegou meu vizinho de porta, e aí a coisa começou a ficar tensa...
Meu vizinho de porta era um cara euim, sabe? Nunca parava em casa, sempre viajando pelo interior. Nunca soube com o que trabalhava, mas sabia que era um brutamontes. Adepto do bandido bom, bandido morto, meu vizinho se gabava de andar armado e de já ter matado...
Vivia gritando com a esposa, destratava os outros moradores, devia condomínio, era um escroto que sempre queria se dar bem, e, contudo, gostava de mim e me respeitava pacas (vai entender o mundo...).

Pois esse vizinho chegou e ficou de cochicho com os linchadores, num canto...
...e eu, alerta, esperando a coisa esquentar.

Aí o vizinho sumiu e, do nada, ressurgiu como carro dele, todo peliculado, já com o porta malas aberto.

Veio com tudo, acelerando, e parou quase em cima da gente.
Os caras vieram com tudo, gritando, dizendo que a PM não viria, pois o bandido era “de menor”.

Mas que eles iam resolver aquilo e levariam o menino de 11 anos para a delegacia - e enquanto diziam isso, eles riam.
Eu vi, nos olhos daquela gente, que não ia ter delegacia. Que eles iam dar um feio corretivo naquele menino, ou, talvez, matar.

Uma criança de 11 anos.

E eles vieram me empurrando, pegando o moleque na força, e eu fazendo força também, e jogaram o moleque no porta malas.
Naquele dia eu tava muito malucão, sabe? Não tava pensando em nada, só queria que o menino fosse levado para o lugar certo. Só isso.

E quando vi o moleque sendo enfiado no porta malas, novamente fiz algo sem pensar: me meti no porta malas, com as pernas de fora, e disse: bora.
- Não, dr, deixa que a gente leva esse merda (eles falavam merda para o menino)

- Eu vou também.

- Não precisa.

- Mas eu vou.

- Então bora na frente.

- Só se ele for.

- Ele é bandido, é perigoso.

- Ele só tem 11 anos, vocês são três marmanjos. Que ele pode fazer?
E a assaltada lá, querendo entrar no porta malas também, repetindo insistentemente, que o menino tinha 11 anos, a idade do neto dela, e que o cordão não valia nada, e que era melhor deixar o menino ir embora.
E como eu não saia do porta malas, e como eles queriam sair dali com a criança antes que a PM chegassem, botaram o menino no banco traseiro e já estavam indo embora, quando eu me toquei:

- Como vão registrar ocorrência sem a vítima? - e tratei de empurrar a mulher para dentro.
E aproveitei para me meter dentro do carro também, gritando: SOU TESTEMUNHA, SOU TESTEMUNHA.

Aí fomos, parece carro de palhaço: o motorista escrotão meu vizinho, dois outros mau-caráter, a assaltada e eu, e o menino no nosso meio, agarrado na gente, com medo nos olhos.
Aquele menino sabia que a morte estava perto. Já tinha perdido amigos assim, sabia das quebradas. Vinha calado, porque sabia que vida e morte estavam com ele naquele carro...

Os caras ainda rodaram meio sem rumo, se entreolhando, e eu, chato, indicando o caminho da delegacia.
Finalmente chegamos lá, o menino todo ferido da queda, todo surrado dos homens, mais a assaltada, desdenhando do cordão, eu, ridiculamente vestido, sem dinheiro ou celular, só com a OAB, e os homens de bem, morrendo de raiva pela chance perdida de matar a criança.
Autoridade policial chegou, fez os procedimentos de menor, deixou o menino seguro e a gente também. Quando a gente se deu conta, os homens de bem já tinham sumido.

E o menino, vejam bem, queria o cordão para vender e comprar um tênis maneiro, para ir para a escola...
Agora, a pergunta: por que estou contando tudo isso?

Porque essa história virou um conto, O menino de 11 anos, que foi parar no meu livro.

E uma professora de Belém descobriu esse conto e resolveu usar com os alunos dela...
...e os alunos dela são menores infratores do Centro Juvenil Masculino, meninos que cumprem medida socioeducativa.

Os alunos dela SÃO O MENINO DE 11 ANOS, e tem sido lindo o trabalho que ela faz.
Ela começou ano passado esse projeto.

Utilizando a história, que é deles, ela fez uma Feira Literária em que eles recontam suas história, e refletem sobre vida, morte e a “prisão”.

Eles recontaram o conto em forma de quadrinho, tivemos bate papo e foi lindo.
E hoje nos reencontramos, no meio da chuva de Belém, para falar sobre a nova Feira Literária deste ano.

Olha eu e a professora Chris Souza, do CJM/FASEPA, pegando chuva.
Ela gravou vídeo dos menores infratores em que eles falam do conto, de como foi importante a reflexão - e eles pedem livros de presente, e querem bater papo, e querem fazer quadrinhos contando a história deles - e vocês não imaginam como isso tudo faz valer viver e ter escrito.
Então, é isso: eu não desisti daquele menino de 11 anos e também não vou desistir desses.

Vamos expandir o projeto, leva a reflexão a outros meninos, conversar e buscar o essencial: ressocializar.

Obrigado, Chris, por essa ponte de esperança em dias tão sombrios.
Um detalhe que o @andregraziano não deixa escapar: a cor do menino. O menino era preto, como são quase todos os meninos de 11 anos que andam pelos quarto-cela da FASEPA, nos Centros Juvenis.
É isso, amigos.

Esse mundo tá cheio de meninos de 11 anos, quase todos pretos e pobres, sumidos na mão de gente ruim, quase todos, homens de bem.

Fim
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