Quando discuto o tema de Israel com os alunos, tendo a ser cuidadoso, pois trata-se de olhar para uma situação específica: um Estado-nação que mistura identidade religiosa com identidade étnica-nacional (+).
Eu não saberia dizer se é o único caso, mas é talvez o mais alarmante. No livro "A invenção do povo judeu", o historiador israelense Shlomo Sand deixa evidente que a força geopolítica de Israel sempre esteve ligada a dupla identidade. De um lado, o judeu como "religião" e (+)
...do outro, o judeu como grupo étnico. Assim, o Estado pôde explorar essas duas identidades mesmo sendo considerado uma democracia secular no Oriente Médio.
Todavia, Sand mostra que o preconceito com judeus falashas (etíopes) é uma realidade em Israel...e não só. (+)
Todavia, Sand mostra que o preconceito com judeus falashas (etíopes) é uma realidade em Israel...e não só. (+)
Isso impacta também a história oficial do Estado de Israel. Esse ano, recebi um panfleto de uma organização em defesa dos interesses de Israel. E no panfleto, ela dizia que o país teria 3.000 anos de história.
Aí é treta e, como historiador, é preciso se posicionar. (+)
Aí é treta e, como historiador, é preciso se posicionar. (+)
Dizer que Israel tem 3.000 anos de história é uma narrativa que liga o imemorial religioso ao Estado nacional contemporâneo. Serve, claro, para justificar o Estado-nacional. Mas via de regra, não existe Estado-nacional de mais de 3.000 anos. (+)
Vou mais longe: não existe Estado-nacional de mais de três séculos. Essa ideia de que o Estado serve para defender a soberania de uma nacionalidade é uma invenção moderna. E vocês podem citar trezentos exemplos anteriores ao século XVIII, não são Estados-nacionais. (+)
Onde que a história oficial israelense passa a se amparar se isso não existe? Na religião, claro. E aí campos científicos como a arqueologia ou o mapeamento genético são usados justamente para corroborar a narrativa religiosa. (+)
Mas o problema que se coloca ainda é o mesmo: judeu é uma designação religiosa, ou étnica? Se é religiosa, o que fazer com comunidades judaicas ateias? Ou mesmo convertidas a outras fés? E se é étnica, como lidar com as diferenças linguísticas entre as comunidades judias? (+)
Sand é muito feliz em dizer que essa ambiguidade serviu e serve aos interesses de grupos sionistas em Israel. Mas eu vou mais além aqui, chutando mesmo: em tempos de ascensão da extrema-direita, essa ambiguidade também passa a se encontrar em outros países. (+)
Comentei rapidamente com o @joaoehlert sobre a Índia de Modi e o processo de "hinduização" da sociedade, inclusive prevendo a expulsão de muçulmanos - que são cidadãos indianos como quaisquer outros.
Começou com a hinduização dos nomes das antigas cidades islâmicas...(+)
Começou com a hinduização dos nomes das antigas cidades islâmicas...(+)
...mas hoje a coisa já chegou à islamofobia como política de Estado.
Poderia citar aqui o exemplo da Polônia, que a @nomelouco37 conhece tão bem e como a extrema-direita e a Igreja católica estão reinventando o nacionalismo polonês. (+)
Poderia citar aqui o exemplo da Polônia, que a @nomelouco37 conhece tão bem e como a extrema-direita e a Igreja católica estão reinventando o nacionalismo polonês. (+)
Outras narrativas emergem dessa mesma lógica, buscando a "pureza" do Estado-nação dos países ocidentais na Idade Média, associando com o cristianismo do mundo feudal (o @phpacha já trabalhou com isso também). (+)
Mas a rigor, o modelo israelense de dualidade entre a ideia de etnia nacional e a ideia de grupo religioso antecede os demais. E é ele que serve de horizonte no Brasil, hoje, para fundamentalistas neopentecostais que acreditam na necessidade da religião ancorar o Estado. (+)
O assustador é ver isso em escala global e nas mais diferentes religiões. Porque por mais que haja particularidades, tudo indica que não há uma crise do Estado-nação, não. O que se tem é uma crise da identidade nacional secular. (+)
Eu queria terminar esse fio numa nota mais positiva, mas não vai dar. A real é que essa nova perspectiva foi capaz até mesmo de ameaçar o sonho de Gandhi, de um Estado-nacional indiano baseado no pluralismo religioso. 
PS: A imagem é uma miniatura do século XVII, de Nar Singh, sobre o Ibadat Khana (o "templo da adoração"), na Índia. Nela, muçulmanos, hindus, sikhs e cristãos debatem teologia com o shah do Império Mughal.
Teve um tempo em que já fomos mais seculares...
Teve um tempo em que já fomos mais seculares...
