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O fio sobre Sun Tzu ontem levantou uma série de questões legais. Uma delas eu tive acesso graças a um texto que o @mgaldino postou e que eu achei muito bom. Mas tem uma anedota aqui que merece o prêmio de "puro suco de orientalismo".

thestrategybridge.org/the-bridge/201…
Trata-se da história de Liddell Hart, renomado historiador militar britânico.

Durante a 2ªGM, Hart se encontrou com o adido militar chinês na Inglaterra. O adido, querendo impressionar, disse que os cadetes da escola militar de Whampoa...
...eram leitores vorazes das obras de Hart. Mas o historiador, sem muita noção do que os cadetes chineses liam, perguntou: "e Sun Tzu?". O adido virou para o lado, falou que achava importante, o livro era um clássico, mas a maioria dos jovens consideravam ultrapassado.
Hart, com a típica arrogância ocidental, então decretou: "pois está na hora dos cadetes voltarem a ler Sun Tzu".

Para o adido militar chinês, deve ter sido como se alguém dissesse, em plena 2ªGM, que a resistência grega tinha que ler Tucídides para lutar contra o nazismo.
Mas essa não é a única história em que um "ocidental" se sentiu à vontade para ensinar os chineses a como ser...chinês.

Tem uma outra anedota que gosto muito, que gira em torno do primeiro presidente da República da China, Yuan Shikai.
Shikai era general e monarquista, mas aceitou o encargo de ser o primeiro presidente da república chinesa após 1911. Ele faria um governo de transição para a formação da Assembleia Constituinte, que definiria a carta e as regras eleitorais da nova república.
O problema é que Shikai (e o alto oficialato) rapidamente rompeu com o Kuomintang e acabou tomando o poder sem prazo determinado. Em 1914 ele fechou a Assembleia e governou de forma autocrática. Mas até então, ele era presidente mesmo (ou ditador, já que a palavra tá na moda).
Quando a 1ªGM estourou, contudo, os japoneses atacaram os territórios alemães na China e rapidamente se colocaram numa posição de "protetores" da soberania chinesa - mediante o módico preço de todas as minas de carvão e ferro do antigo "Reino do Meio" e outras demandas.
Sem poder enfrentar diretamente os japoneses, Shikai se viu compelido a aceitar as exigências nipônicas. Isso gerou inúmeros protestos e sua popularidade despencou. Isolado e com o poder político por um fio, o presidente/ditador resolveu se aconselhar com um americano:
Frank Johnson Goodnow era um respeitável cientista político americano. Ele estava a serviço do governo americano, auxiliando o governo chinês desde 1913 na elaboração de uma constituição para a República e, mesmo depois do fechamento da Assembleia, ele seguiu a serviço de Shikai.
Para Goodnow, o povo chinês não estava "maduro o suficiente" para a democracia. De fato, a constituição que ele estava escrevendo previa que Yuan Shikai seria presidente vitalício da China. Mas diante da crise de popularidade do general, ele teve uma nova e "brilhante" ideia.
E se a China voltasse a ser um império?

O argumento de Goodnow, para além da "imaturidade política" dos chineses, se baseava num cálculo lógico: a história da China imperial, entre tantas guerras e dinastias, tinha mais de 3 mil anos. Logo, os chineses estariam acostumados...
...a ter um imperador. Seria uma ótima forma de recuperar a popularidade de Yuan Shikai.

O general rapidamente topou a ideia e se autodeclarou Imperador Hongxian e restaurou o império, sob nova bandeira e dinastia.
O resultado do conselho do especialista americano foi um desastre. O novo império chinês durou exatamente 3 meses e meio. Os protestos contra Shikai se avolumaram em todas as cidades e até mesmo os militares se amotinaram, abandonando o novo "imperador".
O desastre político foi tão grande que o império acabou sendo dissolvido já em março de 1916. E meses depois, Yuan Shikai acabou morrendo, o que deixou a presidência vaga.

O império chinês nunca mais foi restaurado e Goodnow seguiu uma bem sucedida carreira acadêmica.
As duas histórias retomam essa mesma lógica: o sujeito (inglês ou americano) que se sente à vontade para dizer aos chineses como ser chinês. É um tropo recorrente na literatura e no cinema ocidental - falei do James Clavell ontem, pra ficar num exemplo.
Mas ele é recorrente também porque há uma certa tranquilidade de quem está no centro do mundo para dizer como uma sociedade ou uma cultura deve lidar.

O mais interessante do texto de Sullivan, que eu linkei no início, é justamente a falta de noção dos ocidentais.
Sun Tzu é, antes de mais nada, um documento histórico sobre um período histórico chinês. Acreditar na sua aplicabilidade universal acaba sendo uma forma de orientalismo bastante sutil, mas recorrente, que pressupõe que o "oriental"...
...está estagnado no tempo. Termos como "sabedoria milenar" são usados para obras chinesas e japonesas, mas não me parece que usamos o mesmo termo para Aristóteles, ou Tucídides (não obstante, estranhamente, eles possam ser considerados temporal próximos).
O interessante dessas histórias também, para nós brasileiros, é pensar como compramos de forma acrítica essas descrições sobre o outro "oriental". Mesmo quando consumimos um autor chinês - como Sun Tzu - podemos reproduzir os preconceitos comuns do imperialismo e do orientalismo.
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