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※ O QUARAIACI ※

Assim como no ano passado, no #Inktober2019 eu vou postar ilustrações e textos com histórias de Tiriana. No último eu fiz os Grandes Dormentes, entidades adormecidas espalhadas pelo território. Agora serão páginas do Quaraiaci, um livro muito famoso por lá.
Por incentivos muito INCISIVOS da @janapbianchi no ano passado, dessa vez eu vou fazer um fio aqui no Twitter juntando todas as postagens. Só que assim: vou publicar aqui a imagem do dia e um comentário sobre a criação, e um link pro Instagram, que é onde vai estar o texto.
Começando por um prefácio postado no Instagram quatro dias antes de começar o Inktober propriamente dito. A história está aqui: instagram.com/p/B24AQ6IhXRH/ e a imagem é a mesma do primeiro post aqui do fio: a folha de rosto do Quaraiaci (leia a historinha pra não se perder agora!!).
Esse Inktober é ligado diretamente ao que eu pretendo fazer no NaNoWriMo (o que vai ser uma LOUCURA): a narrativa do nano vai seguir três personagens, sendo que um deles, um menino chamado Resaru, carrega o Quaraiaci pra cima e pra baixo, e usa o livro pra ajudar numa jornada.
O ponto é que a história de Resaru vai se passar 150 anos depois do livro ter sido publicado. O Quaraiaci que eu vou postar é a edição original, em que muitas das coisas eram apenas rumores ou diz-que-me-diz, e o Resaru vai acabar corrigindo as informações na viagem dele.
Maaas, falando do Inktober. O Quaraiaci é baseado no Lunário Perpétuo, um livro cuja primeira edição, publicada em Valência em 1594, falava sobre a vida, o universo e tudo mais. Basicamente um manual de agricultura, horóscopo, calendário, plantas medicinais e por aí vai.
O livro que existe em Tiriana vai ser basicamente a mesma coisa, mas também vai ser um guia bastante abrangente sobre os "numes", que é como eu estou chamando as criaturas que seriam equivalentes às nossas lendas — e que por existirem de verdade por lá... não são lendas. Dã.
"Nume" não é uma palavra muito comum, mas existe: significa ser ou poder divino, entidade sobrenatural, espírito etc. Em Tiriana, sol e lua são equivalentes em importância, então o livro se chama Lunissolário (Kûaray+Îasy, Sol+Lua).
No caso, Kûaraîasy Marãe'ym significa "Lunissolário Imperecível", mas no esquema LICENÇA POÉTICA né porque eu só estou usando um dicionário de tupi antigo e sendo feliz misturando as palavras. Por último, o nome completo da escritora do Quaraiaci é Erapuana Acará Guarini.
"Acará" é a palavra-espírito que ela recebeu com 13 anos, e é um nome de animal: Cascudo. Erapuã (famoso) Guarini (guerreiro) é o mais próximo que cheguei de "Luiz", que vem de hlud+wig, palavras que significam as mesmas coisas. É o meu jeitinho de homenagear o Câmara Cascudo. :)
No #Inktober vou fazer os desenhos de versões tirianas de lendas brasileiras que estão presentes no Quaraiaci, e os textos serão relatos de viagem da Erapuana falando não só sobre os numes, mas também sobre espíritos e divindades locais que ela encontrou nas suas andanças.
A propósito, a folha de rosto tem um pouquinho de texto na principal escrita de Tiriana, usada para escrever a língua geral (ou língua namurana, baseada numa cultura específica). Tem uma tradução do que está escrito nessa imagem aqui: instagram.com/p/B2w0IKphReM/
Ela é inspirada (na real é basicamente outra versão) do Laoris, uma escrita/idioma criados por Anton Brejestovski, que os fez para as músicas feéricas do seu grupo, Caprice. Eu simplifiquei e usei a mesma estrutura para criar mais símbolos, com os fonemas do tupi e do português.
A música que está escrita em Laoris aí é essa aqui. Caprice é uma coisa meio neoclássica rococó música de câmara ode à Titânia, então ESTEJAM AVISADOS. (Eles também têm um álbum de versões musicadas das Canções do Blake, e também de poemas do Tolkien 💖).
#Inktober2019 01 ※ MANAYUMU※

Texto com a história em instagram.com/p/B3FEJDRhWzD/. O nome Manayumu vem de "Amana", também chamada "Wala-Yumu" (“espírito das espécies”), uma mãe-virgem criadora do universo e chefe dos seres aquáticos na teogonia dos povos karibe.
Amana exerce seu poder a partir das Plêiades, que são um importante asterismo para diversos povos indígenas brasileiros. Ela tem dois filhos, correspondentes à luz e à sombra e, respectivamente, às Plêiades e à Serpente Celestial — que quando devorar as estrelas, findará o mundo.
Isso tem eco entre os Tukuna, com uma entidade chamada Venkica, que ameaça engolir a lua. Em Tiriana ele se tornou Enkitsa.

O culto de Amana em Tiriana é algo pontual, e no texto eu menciono uma enxurrada de termos que se relacionam com a principal cultura de lá, a namurana.
A fé namurana tem esse nome por se referir à Avó do Mundo, Yetsí-Namurõ, e seus filhos, os Pais e Mães do Mundo, que se separam em sete pares. Cada casal tem uma filha, e as sete são chamadas de Mulheres-Relâmpago, pois são feitas da luz do corpo de Yetsí quando ela morreu.
Yetsí se transformou em pedras de luz quando partiu, e por isso as Mulheres-Relâmpago também são chamadas individualmente de Itaveras (guarani: pedra-relampejar) ou coletivamente de Itaverendi, (ita+vera+endy, pedra+relampejar+brilho), ou seja, brilho das pedras-relâmpago.
Eu me baseei no número sete para muitas coisas, porque tomei as Plêiades como alicerce pra praticamente tudo. Em tempo: as Mulheres-Relâmpago são inspiradas nos Homens-Relâmpago, da criação do mundo dos Desana.
Foi esse livro que me ajudou a fundamentar um mito de criação que foi torcido e retorcido por muitos povos tirianos: "Antes o mundo não existia: Mitologia dos antigos Desana-Këhíripõrã". Dá pra ler ele inteiro aqui! acervo.socioambiental.org/sites/default/…
Eu provavelmente já falei disso em algum momento, mas acho que também cabe aqui: eu fiz uma lista de Tiriana no Spotify! :D (basicamente é um monte de música brasileira que eu ouço quando tô escrevendo/desenhando haha):

open.spotify.com/playlist/3kksr…
#Inktober2019 02 ※ TUGÛINHANGÁ ※

Texto com a história em instagram.com/p/B3HVyQ1BqxU/. Esse nume é baseado no asanbosan, um mito dos akan, grupo étnico/línguístico de Gana e Costa do Marfim.
Até onde eu vi no mito original, ele é visto como uma espécie de vampiro de pele pálida, cabelos vermelhos e dentes de ferro, com ganchos no lugar de mãos e pés. Não mudei muita coisa, na verdade, com exceção do nome e de deixar ele mais ARANHUDO.
Os ibatani (se fala ibataNI) são o povo que representa algumas etnias africanas em Tiriana. Os etarã (meus "indígenas") são a maior população e o principal ponto de vista, então é natural que os nomes todos reflitam isso — por isso a Erapuana fala "ibatã", é como ela entende.
Seguindo a mesma lógica, o nume se chama tugûinhangá porque é o nome dele na língua etarã — representada pelo Tupi antigo. [T]ugûy (sangue) + anhangá (demônio). Diabo de sangue ou, bem, vampiro.

"Nã-samboçã" é como a Erapuana entende o que os ibatani falam (esse sim, asanbosan).
Não vou entrar no mérito de que "anhangá" se tornou "demônio" por causa dos jesuítas... mas querendo ou não é um dos significados que a palavra tomou, então uso ela esporadicamente pra compor algumas coisas, ainda que não existam exatamente "demônios" em Tiriana.
Complementando: já falei das Itaveras lá em cima, e tem uma outra coisa muito importante em Tiriana que também mencionei nesse último nume: a pedra-luz, que *também* é chamada de itavera (por motivos religiosos/culturais).
É uma rocha encantada descoberta nos últimos 300 anos e que mudou a vida do continente. O maior paralelo possível com o nosso mundo é: energia elétrica. Só que ela tem propriedades mágicas e é usada pelos etarã para feitiçaria e ritos de proteção contra as criaturas da noite.
Tem mais sobre ela nesse post aqui, apesar dele falar da situação atual de Tiriana (em que boa parte da itavera do mundo se apagou). As histórias do Quaraiaci foram escritas no auge da exploração da pedra-luz, quando tava TUDO BEM. encontrosaleatorios.com.br/blog/2019/02/1…
#Inktober2019 03 ※ ACANGAÍMA※

Texto com a história em instagram.com/p/B3J-lutB0mf/. Os acangaímas são a versão tiriana da mula-sem-cabeça. Eu acho a figura da mula sensacional, mas a lenda é meio zoada porque, bem, misoginia. Uma mulher se entrega pra um padre e ELA é amaldiçoada?
Sei que na real é outro mito que envolve a transgressão de um tabu e uma consequência devido a isso, mas queria simplesmente usar a imagem de um animal sem cabeça e com esse fogaréu todo. Muitos dos tabus de Tiriana envolvem invasão de territórios (como muitos mitos brasileiros).
Na história de Tiriana, uma das coisas mais graves que aconteceu foi o Dia do Martírio, o evento que marca o início da contagem dos anos no calendário atual. Os Antigos Reis-Feiticeiros (hoje extintos [?]) reuniram centenas de seus escravos e os sacrificaram no alto de um morro.
O alto do morro era uma jazida aberta de pedra-luz, e os Antigos sabiam da ligação da rocha com os espíritos do mundo. Com o sacrifício, esperavam lavar a terra com o sangue dos mortos e despertar algo ainda maior e , mas tudo o que conseguiram foi a própria destruição.
A terra tremeu e toda a pedra-luz do mundo fez com que cataclismas destroçassem o continente. Os Antigos, que usavam a rocha em suas cidades brilhantes, joias, ornamentos, utensílios e encantarias, foram todos rasgados enquanto o mundo gritava e seus então escravos eram libertos.
Os sacrificados hoje são chamados de Benditos, e o altar de sua morte tornou-se o Morro do Martírio, um lugar agourento e proibido rondado por espíritos vingativos, aparições e fantasmas de pessoas, animais e numes que sofreram as consequências do primeiro grito da terra.
Os povos de hoje são descendentes dos escravizados de então, que se viram num mundo escuro sem a presença de seus mestres-feiticeiros. Redescobriram como viver e estabeleceram os domínios que existem até hoje.
As áreas de terra acabada, como são chamados os locais soterrados por escarpas de rocha, mato e selva que surgiu da noite para o dia, foram proibidas. Tornaram-se tabu e caíram no esquecimento, até que a pedra-luz, perdida na história e no escuro das pedras, foi redescoberta.
#Inktober2019 04 ※ BACURAU※

Texto com a história em instagram.com/p/B3Mv0_qhVYc/. Eu acho que só fui conhecer a lenda do Bacurau mesmo esse ano, com o Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro (livro dos incríveis @janu_alves e @berjeee que saiu pela @edicoessescsp).
É claro que hoje você fala em Bacurau e o que vem à mente é o filme do @kmendoncafilho (vejam Bacurau!™), então acabei usando isso como inspiração no que estou escrevendo, também.
No caso da historinha de hoje, a vila se chama Curianga porque curiango é outro nome/aparentado da ave, e a cidadezinha de pessoas caladas fica às margens do ribeirão Pereira como uma homenagem à maravilhosa Lunga e, é claro, @silveropereira. :)
Uso muitos nomes e pessoas e outras histórias como sementinha pras coisas que eu faço, mas como ferramenta de criação, mesmo, e não como "olha só deixa eu jogar essa referência aqui pra ver se pegam." Essa é uma das poucas exceções, eu acho, porque VEJAM BACURAU.
No caso de Tiriana, toda a região que eu estou criando representar a cultura branca/europeia/ibérica está bastante atrelada ao sebastianismo, ao Nordeste brasileiro e à referências literárias, principalmente coisas do movimento armorial e do Ariano Suassuna.
No caso do nume de hoje, o Bacurau (o filme) se tornou uma algo tão grande que seria impossível eu não fazer alguma coisinha ali que refletisse a presença dele nesse mundo. :)
#Inktober2019 05 ※ Pamberu e Mimberu※

Texto com a história em: instagram.com/p/B3POqvhhZE6/. Eu estava me prometendo desenhar esses dois já tinha bastante tempo, desde que comecei a estudar um pouco mais sobre cultura kaingang.
Na verdade não encontrei histórias envolvendo os dois; eram apenas descrições breves: Pỹntfẽr, uma cobra com asas, e Mĩgfẽr, uma onça com asas. A cobra tem a mesma essência da lua, e pode devorá-la, assim como a cobra compartilha a essência do sol e dessa forma pode comê-lo.
Todo o universo kaingang é dividido nesses dois polos, correspondentes aos irmãos-heróis originários, Kamé (sol) e Kainru (lua), e os clãs desse povo se marcam de acordo com desenhos específicos de cada metade. Traços retos são solares, círculos e formas orgânicas lunares.
É muito mais complexo que isso, claro, mas aqui estou usando de uma simplificação para poder representar isso nos desenhos. O povo araucã, que menciono na história, é diretamente inspirado nos kaingang, e vive no sul gelado de Kenfrir, num isolamento autoimposto após um deicídio.
Como sempre acabo falando de mil lugares diferentes, aqui vai um mapa simplificado do continente. É orientado pelo leste por razões culturais dos etarã. Não sei se todos os nomes vão se manter os mesmos, mas até então são os que estou utilizando. :)
Acabei de ver que cometi um ERRÃO indo e voltando no texto. Só corrigindo:

"A cobra tem a mesma essência da lua, e pode devorá-la, assim como a [ONÇA] compartilha a essência do sol e dessa forma pode comê-lo."
Aproveitando: assim como os Kaingang, inúmeros outros povos originários daqui entendem sol e lua como dois irmãos, meninos ou homens adultos. Por isso acabei decidindo que nos textos de Tiriana sempre vou usar gênero masculino pra me referir ao lua.
É mais pra lembrar a mim mesmo (e a quem lê) que esse mundo é visto sob outro ponto de vista. E que mesmo a imagem que temos de Guaraci e Jaci como um homem e uma mulher é equivocada.
#Inktober2019 06 ※ Niangas ※

Texto com a história em: instagram.com/p/B3R4XrbBrlL/. Tudo o que eu achei sobre Niangi é basicamente uma linha do livro "Jurupari: Estudos de Mitologia Brasileira", de Silvia S. de Carvalho. Ela fala de uma divindade aquática em forma de centopeia.
Eu mudei pra lacraia e deixei praticamente o mesmo nome. Na história eu mencionei a niangaçu, e isso tem a ver com a perspectiva cultural de alguns povos ameríndios: cada coisa tem um espírito, mas também há espíritos que regem cada categoria.
Assim, as niangas como numes se comportam quase como animais selvagens, apesar dos poderes e tabus sobrenaturais, mas grupos delas respondem à niangas-mãe, niangaçus, entidades maiores, mais espírito do que carne, que são donas de territórios e devem ter a vontade respeitada.
#Inktober2019 07 ※ Avaguaras ※

Texto com a história em: instagram.com/p/B3ULFADBCJi/. Os avaguaras são a versão tiriana do lobisomem, e resolvi mudar o nome deles pra esse mundo por dois motivos: primeiro, a carga pesada de LOBISomem e a imagem cristalizada do homem-lobo do cinema.
Segundo, praticamente todas as criaturas encantadas (numes) são mais estudadas e compreendidas pelos povos etarã, que aqui representam os indígenas, e que nomeiam as coisas de acordo com seu idioma. No caso, não estou inventando uma língua, e sim fazendo a festa com tupi antigo.
Avá ou abá é "pessoa" e "gûara" é "o que come". Avaguara seria o devorador de gente, um nome meio genérico, mas que acaba se aplicando apenas a esse nume. O lobisomem brasileiro se transforma num dia específico da semana, geralmente de quinta pra sexta, e o europeu na lua cheia.
Eu juntei o "quando" da transformação das duas lendas. Os meses tirianos são regulares, com 28 dias cada um, e o primeiro dia de cada semana é sempre na mudança de lua — o mês sempre começa com o primeiro risco de lua crescente, e as fases se alteram a cada sete dias.
Os avaguaras, assim, sempre se transformam na madrugada do que seria domingo para segunda (ou sábado para domingo, se você ainda considerar domingo como sendo o 1º dia). A decisão de fazer ambos os transgressores serem amaldiçoados, em vez de um só, também me pareceu mais lógica.
A endogamia é um tabu bastante marcante entre muitos povos originários brasileiros, que se organizam em clãs, subgrupos e outras divisões de forma que parentes nunca tenham filhos — algo bastante sério para sociedades que vivem em grupos pequenos.
Daí o costume de formar famílias com pessoas de grupos distintos, de viajar entre aldeias e encontrar pares que não compartilham do seu sangue.

É algo que também é bem forte em Tiriana, pelo menos entre os etarã, que se organizam em comunidades relativamente isoladas entre si.
Isso é interessante porque faz com que o avaguara seja uma maldição imposta apenas àqueles que possam, juntos, gerar filhos. Casais formados por pessoas que sejam parentes mas que não possam gerar crianças não se tornam avaguaras, pois o tabu é ligado ao sangue, e não ao coração.
Aliás, estou usando "casal" no sentido de que... bem, você precisa de duas pessoas pra ter um bebê. Relacionamentos com mais pessoas (e ou com pessoas do mesmo gênero) não são tabu em Tiriana — ao menos não no geral. Sempre vai ter um ponto ou outro de atraso no mundo.
#Inktober2019 08 ※ Boiuna ※

Texto com a história em: instagram.com/p/B3W3lt7BtoE/. A boiuna é um dos elementos centrais da Tiriana de hoje. Desde que o Estilhaço aconteceu há duas décadas, destruindo muito da pedra-luz, numes vistos antes apenas como histórias retornaram à vida.
Aqui, um lembrete: as terras tirianas sempre foram perigosas e cheias de criaturas da noite, mas isso mudou há três séculos com a redescoberta da pedra-luz, também chamada itavera. Sua exploração avançou a tecnologia e a cultura do continente, e afastou numes e filhos do escuro.
O relato de Erapuana, que estou postando no Instagram, está bem no meio do caminho: é de 160 anos depois da descoberta da itavera, mas 150 anos antes da destruição da pedra durante o Estilhaço. Logo, muitas informações do Quaraiaci estão defasadas, principalmente sobre a boiuna.
Durante o Estilhaço, imensas áreas de mata tornaram-se enegrecidas e pestilentas, cheias de espíritos vingativos, animais e numes corrompidos, que causam destruição por onde passam. Essas áreas, chamadas simplesmente de Mata Escura ou Caaúna, espalhavam-se feito infecções.
Partindo da baía de Aikuretama, a Caaúna se espalhou em direção ao Leste, tomando para si principalmente o centro do continente, na grande área florestal de Ibiraretã.

No mapa, o ponto vermelho é Aikuretama, e a área demarcada por linhas retas é onde a itavera se estilhaçou.
O que se teoriza hoje é que as boiunas sejam as agentes causadoras ou as portadoras da Caaúna: nunca há mais de uma cobra-grande por área de Mata Escura, e causar a morte de uma delas, seguido por ritos de purificação, faz com que a floresta original se recupere.
O revés é que a boiuna deve ser morta dentro dos seus domínios para que o encantamento da mata se desfaça: caso seu sangue seja derrubado fora da Mata Escura, a corrupção de sua existência expande seu território, ou é capaz até mesmo de criar uma nova Caaúna.
#Inktober2019 09 ※ Ka'a ※

Texto com a história em instagram.com/p/B3ZjvW3BSOL/. Bom, eu acho que não tem muito o que falar da Ka'a. Ela é essencialmente a Caipora, mas aqui ela é uma entidade que encarna a própria mata, de forma manifesta. Por isso Ka'a É a mata e a mata É Ka'a.
Eu tenho bastante ressalvas em colocar criaturas mágicas "inteligentes" no mundo. Numes que possam falar diretamente, se comunicar com linguagens normais e tal, porque fico tentando pensar nos desdobramentos sociais disso tudo e em como os povos interagiriam de verdade.
Acho que conversar diretamente com uma entidade assim, frente a frente, meio que quebra o mistério. Teria que ter alguma espécie de mediação, um véu, algo que poderia fazer o interlocutor duvidar de si mesmo, algum elemento que faça ele não ter certeza de que viu ou se alucinou.
Assim, até o momento, todas as entidades capazes de conversar não falam diretamente. Elas se fazem entender. Assim como em religiões afroindígenas brasileiras, algumas delas tomam o corpo da pessoa, falando com a voz dela mesmo que, no caso, estejam ali manifestas fisicamente.
Um encontro com uma manifestação da Ka'a deve ser raríssimo para pessoas comuns, uma coisa realmente digna de histórias. Aqueles que mais se aproximam de entrar em contato direto com uma delas seriam arandus (o equivalente tiriano de pajés, xamãs ou outros líderes espirituais).
E... eu não tinha pensado nisso, mas ontem postei a Boiuna. A Ka'a seria a antítese da cobra-grande. Fora, além das áreas de Mata Escura causadas por esses numes, existem áreas "opostas", mas muito mais raras, chamadas Caaporã: regiões purificadas e habitadas por numes luminosos.
#Inktober2019 10 ※ Janaís ※

Texto com a história em: instagram.com/p/B3cUHSmBqJr/. Os janaís da lenda brasileira só têm cara de coruja, mas eu não ia perder a oportunidade de fazer um bicho híbrido, né?
O original sequestra crianças e leva pra mata pra beber o sangue. Esse também, mas resolvi colocar um pouco mais horror e gritaria. Por mais que as nossas lendas sejam coisas assustadoras, eu não gosto muito de diversas adaptações folclóricas que exageram demais esse aspecto.
Geralmente qualquer "versão atual da lenda X" é algo com muito sangue, gore, cara de demônio etc etc, mas acho que acaba ficando uma imagem muito genérica de tudo. Os janaís são uma das poucas exceções em que fiz algo parecido, eu acho.
Quanto aos outros nomes dele, são todos inventados: suindarugûi vem de suindara (coruja) + ugûy (sangue), ejé-nhobibi vem do som de ẹ̀jẹ̀ owiwi (sangue-coruja, em iorubá) aos ouvidos de Erapuana, e monossangro vem do galego para macaco ensanguentado: mono ensangrentado.
#Inktober2019 11 ※ O Festival de Tiuanxu ※

Texto com a história em: instagram.com/p/B3ezzcBB4DS/. Apesar de meu maior objetivo com Tiriana ser fazer uma fantasia brasileira, eu estou me inspirando em muitos povos indígenas que, por vezes, transcendem as fronteiras atuais do país.
Assim, eu reservei uma parte do cenário para incluir outros povos da América do Sul, principalmente aqueles que têm ou tiveram mais contato com os nativos de onde hoje é o Brasil. O Festival de Tiuanxu é uma transposição quase que direta da Diablada de Oruro, na Bolívia.
Hoje a festa é bastante sincretizada e cheia de elementos que tentaram apagar a sua origem histórica, que era a de ritos homenageando Tiw, uma divindade dos Uru, um povo pré-colombiano da Bolívia. O nome Tiuanxu, de Tiriana, vem diretamente dele e de "Anchanchu", entidade aymara.
Esse é outro ponto em que o relato de Erapuana teria de ser atualizado. O ano corrente tiriano é 1574. Ela presenciou a festa que comemorava a derrota dos demônios em 1386.

No entanto, em 1540, durante o Festival de Tiuanxu daquele ano, os diabos voltaram da pior forma possível.
A festa tomava as ruas das grandes cidades das três nações de Pachai, sendo o evento mais importante do calendário. Naquele ano, no último dia do festival, todas as pessoas que usavam máscaras foram possuídas pelos demônios que elas representavam, que tomaram seus corpos para si.
Os tiuanxus devastaram as três nações, e se espalharam por todos os cantos de Pachai, cujas cidades se transformaram em ruínas e campos de morte. Hoje, 34 anos depois, os refugiados e seus descendentes vivem em outras terras tirianas, e poucos se arriscam a retomar seus domínios.
#Inktober2019 12 ※ Tatá-namá ※

História em: instagram.com/p/B3hQ6NqhhaI/. Assim com fiz com a mula-sem-cabeça, tomei uma lenda como inspiração e extrapolei a partir dela. No caso, os tatá-namás vêm do boitatá. Em Tiriana eles são basicamente a mesma coisa: protetores selvagens.
Na verdade, o conceito de protetores >da mata< é uma coisa que não faz muito sentido em Tiriana. Tudo lá é muito integrado às florestas e a vida em meio às áreas selvagens, então não existe uma separação como a que nós fazemos de Humanidade de um lado e Natureza do outro.
Assim, as separações, limiares e fronteiras tirianas são mais nubladas, mas em vez de "aqui é mata" e "aqui não é mata", existe o conceito de territórios espirituais. >Todas< as terras são ocupadas por espíritos locais, mesmo que esses não se manifestem. São os donos da terra.
Em alguns locais eles hibernam, em outros se manifestam com frequência. Todos têm tabus específicos que envolvem o trânsito por seus domínios, ainda que após o Estilhaço grandes extensões de terra tenham sido devastadas, essencialmente matando seus donos e sendo corrompidas.
"Tatá-namá", assim como a maioria dos nomes, vem do Tupi antigo: "tatá" é fogo, e "anamá" é raça, povo ou nação. Talvez eu ainda mude a grafia para tatanamá, de uma vez, mas mantive as palavras separadas agora no começo para a relação com o boitatá ficar mais clara.
#Inktober2019 13 ※ Alicornes e Anhumas ※

História em: instagram.com/p/B3juI_jhpHJ/. O anhuma é uma ave da nossa fauna, bastante peculiar por possuir esporões nas asas (feito os demoníacos quero-queros) e, mais estranho que isso, um espeto no alto da cabeça, como se fosse um chifre.
A versão tiriana do anhuma tem chifre e esporões bem maiores do que o brasileiro — nesse, o que é chamado de chifre está mais pra uma antena meio caída (o que não deixa de ser esquisito). Mas olha esses esporões, gente!
A lendas dizem que chifre e esporões podem ser usados como amuletos contra acidentes e moléstias. Em algumas regiões o bicho também é chamado de unicorne ou alicorne, conectando com o mito europeu do unicórnio, então pus o nume na região dos "brancos" tirianos, as Suçuaranas.
As Suçuaranas são uma extensão de terra devastada após uma maldição lançada no fim de uma guerra, e toda a região foi abandonada pelos dois lados do conflito. Dois séculos depois, aportaram ali as primeiras embarcações vindas de Auretânia, uma terra distante de além mar.
(Segue novamente o mapa, que já tá perdido lá em cima. De ontem pra hoje uma das regiões já mudou de nome: Ifran tornou-se Oruana. Vou falar disso mais adiante).
Os auros (como se chamam) ou auru (como os etarã falam) são o povo que representa os ibéricos, especialmente os portugueses. Foi bastante difícil pensar num nome pra eles, porque eu queria algo que soasse como "europeu", mas que também se referisse ao fato deles serem fugitivos.
O nome também deveria se relacionar ao lugar de onde eles vinham. E das coincidências mais doidas, pensei só em "euro", fiquei mexendo nas letras pra lá e pra cá e cheguei em "auro", que também lembra aurum/ouro. Fui caçar no dicionário pra ver se a palavra existia e... bem, não.
Só que auro é conjugação de "aurir", como me disse o dicionário. Aurir é "fugir alucinadamente" ou "perder o uso da razão" (é daí que vem "desaurido"). Aí, claro, o nome simplesmente tinha que ser esse. Juntei com "Lusitânia" e pronto, Auretânia.
Os auros chegaram em Tiriana e se espalharam rapidamente pelas Suçuaranas, fundando seus sete reinos. Eles têm toda uma estrutura medievalesca e mantém diversos títulos de nobreza auretanos, mas muitos deles são só nomes, com reis e rainhas eleitos (e depostos) democraticamente.
As Suçuaranas surgiram a partir dos elementos que eu mais gosto do Movimento Armorial e da obra do Ariano Suassuna. Muitos dos nomes, mitos e elementos religiosos vieram do romance da Pedra do Reino, o que faz com que a parte "branca" de Tiriana seja, na verdade, nordestina.
Além disso, há muito de mitologia ibérica antiga, com versões dos deuses lusitanos ancestrais em diversos locais. Os auros são fugitivos de sua terra natal porque ela foi tomada por diabos vindos de outras terras, que devastaram seu continente originário.
Quando fugiram para Tiriana com seus alicornes embarcados, o fizeram em duas grandes viagens. A primeira aportou no que hoje é Tiú. A segunda, um ano depois, chegou onde hoje é Ebra, um arquipélago a oeste das Suçuaranas. Isso acabou dividindo o povo em duas "raças".
Os "castanhos" são os suçuaranos, que abandonaram muitos dos seus deuses e costumes antigos e fizeram as pazes com a nova terra, prosperando em meio ao caos. Os "ebros" são os que tentam construir uma nova Auretânia, e mantêm todas as tradições do passado.
Divaguei sobre os auros porque os alicornes vieram de lá, mas tem uma coisa bem importante sobre a forma dos anhumas de Tiriana: são maiores que os de hoje, em especial seus chifres. Isso vem de um conceito Guarani-Mbya que me deixou fascinado quando eu pesquisava pro meu TCC.
Na dissertação de mestrado do Daniel Pierri, sobre a cosmologia dos Mbya, ele cita um texto de Cadogán, etnólogo paraguaio, que fala de "a'ãga'i te ma": "não é mais que a sua imagem". Para esse povo, as coisas que existem hoje não são mais que imagens das coisas verdadeiras.
Dizem isso porque o mundo anterior acabou, e o de hoje tem apenas formas >derivadas< daquelas que seriam as perfeitas, ideais. A licença poética que eu uso é que Tiriana poderia ser esse mundo passado, então lá existiam as formas verdadeiras do que agora são só cópias perecíveis.
A dissertação do Daniel foi editada e publicada pela Editora Elefante, mas ainda pode ser lida no banco de teses da USP. Eu fiquei realmente fascinado quando li, e foi basicamente a pesquisa dele que me fez começar a pensar em Tiriana. Aqui, ó: teses.usp.br/teses/disponiv…
E pra quem se interessar pelo livro, recomendo bastante, porque é lindíssimo! editoraelefante.com.br/produto/o-pere…
#Inktober2019 14 ※ Mamuanhangá ※

História em: instagram.com/p/B3mwEiphdIx/. O mamuanhangá é uma criação inspirada em uma criatura vampírica dos Ewe, de Gana. O nome poderia ser traduzido como vaga-lume (mamûã) do diabo (anhangá).
É mais uma das entidades que não tem exatamente uma forma definida, porque acaba se manifestando de acordo com os olhos de quem vê. O fato dele se locomover tomando a forma de vaga-lumes é interessante, em Tiriana, porque se mistura ao mito da Ka'a, como menciono no texto.
Os pirilampos são os batedores de Ka'a, assim como da nossa Caipora, e uma revoada deles em bando anuncia a vinda da dona do mato. O mamuanhangá geralmente voa solitário pelo mato, porque dificilmente se misturaria aos vaga-lumes sagrados da senhora da floresta.
Aliás, eu só consegui fazer essa ilustração por causa de um artigo científico que descreve o vaga-lume brasileiro (Cladodes illigeri), porque qualquer pesquisa acaba levando pro inseto europeu. scielo.br/scielo.php?scr…
#Inktober2019 15 ※ Oiura Purunga ※

História em: instagram.com/p/B3pAGdHBTcj/. Oiura Purunga é a versão tiriana da pisadeira, um representante dos terrores noturnos e da paralisia do sono. É um nume sem forma ou gênero definido porque aparece de maneira diferente pra cada um.
Além de mitos e costumes, eu tenho muita vontade de salpicar Tiriana com elementos das artes e da literatura brasileiras — isso em ilustrações, descrições e tudo mais, e não só no mundo em si. No caso de hoje, eu usei como base a famosíssima pintura Moema, do Victor Meirelles.
Desde o começo eu penso em Tiriana tanto como um lugar imaginário pra eu escrever histórias, quanto em um mundo de fantasia para ser explorado por outras pessoas, principalmente por meio de RPG e jogos narrativos.
Em um possível livro de jogo, eu pretendo ter uma parte no final que fala de onde vem cada coisa, de onde eu tirei a inspiração de todos os elementos, e fontes de pesquisa que usei pra conceber tudo.
Uma das ideias de fazer tudo isso é deixar as pessoas curiosas, com vontade de saber mais sobre mitologias brasileiras que são meio apagadas, de apontar e dizer "gente, isso é muito legal, por que é que não aprendemos na escola?" ou "por que é que aprendemos a menosprezar?"
Nesse ponto, Tiriana conversa bastante com a ideia do Christopher Kastensmidt no RPG de A Bandeira do Elefante e da Arara (@elefantearara), que tem uma parte muito legal sobre como usar o jogo em ambientes educativos (e é lindo!).
A diferença é que ABEA é situada em uma versão fantástica do Brasil Colônia, enquanto Tiriana é outro mundo, mas fundamentado em elementos brasileiros, porém dando mais espaço para coisas inspiradas em povos originários e nos africanos trazidos para cá como escravos.
#Inktober2019 16 ※ Caitana ※

História em: instagram.com/p/B3rn0uOBDU1/. Das coisas que eu transpus quase que diretamente para Tiriana, a figura da Moça Caetana deve ser a mais forte. Ela é um dos elementos centrais na obra do Ariano Suassuna, e é quase a mesma nesse meu mundo.
Quando eu comecei a escrever sobre as Suçuaranas, sabia que eu precisava de referências míticas do Nordeste brasileiro, e queria muito misturar com elementos ibéricos (não só portugueses). Na época que idealizei a região, finalmente peguei pra ler A Pedra do Reino, e me derreti.
Eu sempre fui "consumindo" coisas do Suassuna pelas beiradas, pelo Movimento Armorial — a tipografia, a música, as gravuras do Gilvan Samico... mas só fui ler Ariano mesmo no final de 2018, por coincidência, na época do Inktober do ano passado.
Quando li A Pedra do Reino fiquei completamente encantado pela construção do cenário e pelas toneladas de prosa púrpura do protagonista-narrador. Eu já era um pouco interessado pelos mitos sebastianistas, mas o livro me fez querer incorporar tudo aquilo em Tiriana de imediato.
Grosso modo, o sebastianismo é a crença de que o Rei Sebastião foi "encantado", morto-mas-desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir em 1578. Inúmeras histórias envolvem o possível desencantamento e a volta do rei Desejado para conduzir seu povo à glória.
É a base do enredo de A Pedra do Reino, e um elemento que também existe em Tiriana, por meio dos auros. Mas ainda falando das Suçuaranas, toda a configuração dos sete "reinos", seus nomes, suas divindades, é tudo muito inspirado nesse livro do Suassuna, como ponto de partida.
O relato da Erapuana em relação aos auros, na história, é justamente o de apresentar os "brancos" como esse povo exótico, de costumes esquisitos e divindades que não fazem muito sentido para a mente de uma etarã. Por isso ela acaba divagando tanto e nem fala muito sobre Caetana.
O ditado mencionado por ela vem do livro, mas na real é uma frase que o próprio Rei Sebastião citava com frequência: "Che un bel morir tutta la vita honora". Uma bela morte honra toda a vida, ou seja, o seu fim dita como você será lembrado. É uma frase de Petrarca, na verdade.
Para os auros, que vivem numa terra em que a vida é difícil e o perigo é uma constante, pedir uma bela morte é muitas vezes mais importante do que pedir por uma vida abençoada (eles são estranhos, lembre-se).
A imagem gravada na medalha de Caitana é baseada numa iluminura do próprio Ariano, para um poema que ele escreveu. Erapuana comenta como as onças parecem estranhas porque (não só) para ela, justamente, elas não se parecem nada com onças.
No texto da Erapuana, ela menciona a Mãe Aporinori. Eu a ilustrei no Inktober do ano passado, quando fiz os Grandes Dormentes. Ela é uma das minhas preferidas, eu acho. Dá pra ver a história dela aqui: instagram.com/p/BpKZxMnBo-N/.
Em relação à Moça Caetana e à Pedra do Reino, há um trecho do livro em que ela aparece em uma visão profética para o protagonista, Quaderna. Ele vê uma mulher escrevendo palavras de fogo diante de si; é... maravilhoso. E dá pra ouvir aqui lindamente, ó:
O texto é todo simbolista, mas a essência dele é falar sobre o legado que o artista deixa para a posteridade após a sua morte, e como ele é lembrado através das coisas que só ele conseguia ver e deixar para o mundo. Nessa versão, do musical, eu sempre fico arrepiado quando ouço.
#Inktober2019 17 ※ Os Urubus-feiticeiros ※

História em: instagram.com/p/B3t_kaPhyuv/. Eu não lembro exatamente quando ouvi falar dos mitos de povos originários envolvendo urubus, mas é uma coisa que eu queria que aparecesse em Tiriana de alguma forma.
É comum nos mitos nativos eles sejam retratados como donos do fogo, ou da magia (o que é a mesma coisa). Narrativas de povos diferentes ecoam a mesma história: os urubus capturam um herói e o colocam para assar em uma fogueira; ele os engana, rouba o fogo e o entrega à sua gente.
Em alguns casos, os feiticeiros eram homens que foram condenados à forma de urubu por apresentarem o comportamento antropófago, tendo que comer carniça para sempre.

Na minha versão, os urubus são relacionados aos feiticeiros do passado, que escravizaram os povos tirianos.
A ideia é que sejam criaturas realmente misteriosas. Eles foram, sim, extintos, mas suas almas ainda podem ser invocadas por um culto bizarro que venera a magia proibida dos antigos; os pajelantes são inspirados nos ritos iniciáticos do culto do Jurupari.
Stradelli fala de 14 flautas que só podiam ser vistas pelos iniciados; cada uma representava um animal, e o Jurupari tocava através delas. Eu usei esse elemento como base e extrapolei para criar o culto de Kahunga-Pari em si. (Na foto, tocadores de flauta kuikuro)
O nome "Kahunga-Pari" mantém o "pari" de Jurupari — pari também é um tipo de armadilha nativa, feita de bambu, e os pajelantes usam máscaras parecidas com ela. "Kahunga" vem do idioma dos Kuikuro. Segundo esse povo, Kahü é o mundo celeste, guardado por um urubu de duas cabeças.
"Akunga" é sombra ou alma. Juntei os dois pra formar Kahunga. Como já mencionei, a maior parte dos nomes vem do tupi; nesse caso, como o culto se refere aos feiticeiros de Aikuretama, uso o idioma dos Kuikuro, já que a cidade tiriana seria a mesma que existiu no Brasil.
Dá pra ler mais sobre Kuhikugu aqui: aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/repor…. Muitos outros lugares de Tiriana foram mapeados pra estarem na mesma posição de sítios arqueológicos de hoje. Esse foi o primeiro que eu usei. :)
#Inktober2019 18 ※ Batingaribas ※

História em: instagram.com/p/B3w2wmMBaI-/. Os batingaribas são inspiradíssimos na figura do renubeiro, um mito da Galícia. Há versões que o chamam de diabo, gênio ou até mesmo divindade. Fato é que são seres responsáveis por controlar as nuvens.
Não só as nuvens, como por extensão também a neblina, a chuva e os raios. Dizem (na Galícia) que eles vestem roupas brancas e carregam consigo livros escritos com os conhecimentos necessários para controlar as nuvens como se elas fossem rebanhos de ovelhas.
Pensei nas grandes extensões de névoa que cobrem matas pela manhã, e extrapolei as ideias por trás do renubeiro para torná-lo "mais brasileiro", pensando nas oferendas feitas com cestos e marcadas com flautas de bambu. Do original, mantive o semblante e os poderes.
Estou usando mitos galegos e elementos pré-cristãos da Península Ibérica como base pra parte "branca" de Tiriana, porque é para ela soar estranha e exótica para quem lê do ponto de vista "indígena" do cenário. Ir atrás dessas histórias do tempo do domínio romano ajuda muito.
Inclusive, tem sido toda uma aventura ler textos em galego:

galiciaencantada.com/lenda.asp?cat=…
#Inktober2019 19 ※ Boi Canhem ※

História em: instagram.com/p/B3zHitohKzC/. Os folguedos do boi espalhados pelo Brasil são importantes demais para não terem sua versão tiriana. O difícil foi pensar em como encaixar a história no cenário, mas acho que funcionou.
A maior parte das festas brasileiras têm fundo religioso, mas como essas crenças não existem em Tiriana, eu sempre fico pensando em qual é a essência do feriado pra fazer uma versão que funcione por lá. Nem sempre é fácil, mas o prazo diário do Inktober faz com que a ideia SAIA.
No caso do Boi Canhem (e que tem muitos outros nomes em Tiriana, tal qual as festas do boi brasileiro), usei tanto a louvação à figura do boi, tão importante para a cultura rural do país, quanto o cortejo do Boi-Bumbá e seus personagens mais comuns, Catirina e Francisco.
Assim, eu fiquei matutando as histórias brasileiras e tentando pegar a essência delas de forma que pudesse recontar em Tiriana, dando a mesma importância, de um modo que o feriado/festa ainda pudesse ser comemorado de um jeito igual, mas diferente. Segue um print de textão!
A versão da história que a Erapuana registrou (que foi pro Instagram hoje) ainda está com o final um pouco diferente do que eu deixei ali planejado no meu processo, mas isso é consequência de ir colocando as coisas no papel e ver o que encaixa melhor ou não.
No caso de Tiriana, eu sabia que para a festa do boi ser comum em todo o continente, ela deveria remeter a uma história da época da Escravidão, quando os povos eram um só sob o jugo dos Antigos. Assim, hoje cada um tem sua versão, mas ela é igualmente importante para todos eles.
Ali nas anotações eu coloco os dias em que a festa acontece no calendário tiriano; é outra das coisas que eu estou tentando manter uma certa coincidência, além da geografia: da mesma forma que alguns lugares em Tiriana coincidem com lugares no Brasil, muitas das datas também.
A diferença é que o calendário tiriano começa no que seria equivalente à metade do nosso maio; fiz isso inspirado na própria organização anual de muitos povos indígenas brasileiros que marcam o início do ano de acordo com um momento específico em que as Plêiades aparecem no céu.
Já mencionei que as Plêiades formam a base pra muita coisa das mitologias de Tiriana, então isso também seria meio que obrigatório de referenciar. Dá pra saber mais sobre astronomia tupi-guarani nesse artigo do Germano Afonso: sciam.uol.com.br/mitos-e-estaco…
#Inktober2019 20 ※ Alaiberu, o Corajoso ※

História em: instagram.com/p/B32AXcZhmdb/. Alaiberu é a versão tiriana do Quibungo, a criatura homem/macaco/lobisomem que tem uma boca/buraco nas costas pela qual devora crianças. Há inúmeras variantes do bicho, e não sabia bem qual seguir.
O Quibungo está na lista proposta pela @HETthePumpking esse ano e, ainda que eu não tenha a seguido todo dia, fiquei pensando em como poderia adaptar a lenda. Até que vi uma postagem do @andriolli na Outra Rede mostrando uma página de um livro do Sousa Carneiro de 1937. Essa:
Até onde minha pesquisa anda caminhando em relação aos povos africanos escravizados no Brasil, não é tão comum que existam histórias envolvendo monstros estranhos ou criaturas sobrenaturais (e se alguém tiver, aceito indicações!). Mas essa eu achei DEMAIS.
Em Tiriana existem os Dormentes, que fiz no Inktober do ano passado: criaturas imensas que na verdade são espíritos que possuíram terra, pedra e outros seres para formar seus corpos imensos. O Alaiberu não é em nada relacionado a eles, mas também não poderia ser só um "monstro".
Eu não gosto da ideia de monstro gratuito, que tá lá passeando pra ser caçado, então sempre tem mil coisas envolvendo a origem e a função dele no mundo. No caso do Quibungo-Alaiberu, ele foi dado por uma divindade guerreira ao seu povo.
Sousa Carneiro comenta que muitos mitos que vieram da África foram diminuídos e ridicularizados, o que acontece no conto que está no livro: o Quibungo perde a sua força e fica do tamanho de um cachorro. Não queria isso pra Tiriana, então aqui ele é uma entidade importantíssima.
A história que Carneiro registra fala que o pai do Lobo era Ogum, mas o próprio autor comenta que isso foi atribuído depois, e que o nome verdadeiro dela se perdeu. Assim, em Tiriana associei a figura do Alaiberu ao pai da guerra do Oraeze Osimiri, os círculo dos deuses oruanos.
Ainda estou trabalhando nisso, mas os Oraeze são inspirados nos arquétipos dos orixás, nkisis e voduns, e as culturas dos povos de Oruana remetem aos povos que foram trazidos ao Brasil e escravizados.
Nas histórias do Quaraiaci (lá no Instagram), Erapuana fala quase que exclusivamente dos ibatã, mas eles são apenas o povo que ela teve mais contato em Oruana. Há muitos outros. Aliás, deixa eu postar o mapa de novo com uma edição incrível já que o nome da região mudou neste mês.
No comecinho, chamei a região de Ariwa (norte, em iorubá). Mudei pra Ifran por ser um nome possivelmente originário — ifran significa "habitantes das cavernas" para os berberes do norte da África, e seria uma possível origem do nome do continente como o conhecemos.
Só fiquei com a pulga atrás da orelha porque... bem, nossa história não se conecta com os berberes, então precisava de algo mais afroatlântico. Considerei usar "Aruanda" mas isso seria extremamente desrespeitoso, então fiquei pensando em criar uma palavra que remetesse a ela.
Como Tiriana é pra ser uma era mítica do Brasil, a ideia é que muitos nomes que existem hoje em dia sejam coisas que, sei lá, pessoas tenham sonhado ou se inspirado de alguma forma com um passado remoto. Pensei, de verdade, em Oruanda, já que muitos nomes iorubá começam com O.
Mas há uns dias, quando estava realmente encafifado com o nome, abri o livro "Encantaria Brasileira", do Reginaldo Prandi, e dei de cara com um nome semelhante: Oruana. É uma princesa do mar no Tambor de Mina, mas também é um nome próprio, o que me deixou mais tranquilo.
O fato dos ibatani terem atravessado o mar para chegar em Tiriana (assim como os auros, mas muitos séculos antes) se encaixava com a possibilidade de nomear a sua região de acordo com uma princesa do mar. Então está lá: Ifran se tornou Oruana.
E agora tenho nomes demais terminados em -ana.

(Acho que inconscientemente minha irmã está sendo homenageada o tempo todo.)
#Inktober2019 21 ※ Abaporu ※

História em: instagram.com/p/B34h36LhplM/. A ideia pra esse nume veio quando eu pesquisava cosmologia guarani e encontrei o registro dele em uma tese no repositório da UFSC. Não tenho contato direto com indígenas, então sempre procuro em bases de dados.
No caso, a tese é de autoria da Dra. Flávia Cristina de Mello, profa. de Antropologia na UESC, intitulada "Aetcha nhanderukuery karai retarã: entre deuses e animais: xamanismo, parentesco e transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani". Completa aqui: repositorio.ufsc.br/handle/1234567…
Em um trecho ela detalha os espíritos canibais, que assumem forma humana e alimentam-se de carne crua. A essência da história é o que eu mantive: são atraídos por urina e vêm em busca de sexo ou de capturar marido ou esposa. No original são belos e disfarçam seu lado monstruoso.
Enquanto a história guarani fala que a urina atrai um espírito do sexo oposto, o nume tiriano assume a forma que é mais desejada pela pessoa perdida. O fato de quererem fazer um filho é invenção minha, porque fiquei pensando em como seria a existência de um filho de abaporu.
Mello comenta que existem várias famílias desses espíritos (chamados "tupichua") que, assim como outros seres invisíveis, enxergam as almas humanas como quatis, um de seus alimentos preferidos.

O nome tiriano deles, Abaporu, vem de uma pintura que acho que poucos conhecem.
Inicialmente chamei esse nume de avaporu, pra distanciar da obra, e porque seria outra possível construção da palavra (o B do tupi se assemelha ao B/V espanhol). Hoje acabei achando melhor manter "abaporu", mesmo. Até a pose na ilustração é pra remeter à pintura da Tarsila.
Em tupi antigo, "abá" é homem, mas também pode significar "pessoa" e "poru" é "comer gente, antropofagia". Abaporu é a pessoa que come gente, o canibal.

Erapuana não sabe nada sobre filhos de abaporu além do fato deles serem malvistos.
#Inktober2019 22 ※ Ibiquarambós ※

História em: instagram.com/p/B37EihEhW2h/. Os ibiquarambós são uma total invenção, inspirada nos ningó'mâg do povo Kaingang. A referência pra eles veio da tese da Dra. Juracilda Veiga, "Cosmologia e práticas rituais Kaingang".
O texto completo está disponível aqui: cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/cos…, mas segue um print do trecho que me deu a ideia. Muitas das coisas que eu crio pra Tiriana partem de descrições breves assim: pego um ou outro elemento e tento encaixar com as histórias que quero contar em Tiriana.
A pedra-luz, ou itavera, é um dos pontos centrais de Tiriana. Essas criaturas das histórias dos Kaingang vivem em minas, então seria o local ideal pra fazer algo inspirado nelas. Fora isso, ao pensar na sua natureza, eu logo pensei nas bonecas de cerâmica dos Karajá.
Kaingangs e Karajás não são povos relacionados; o primeiro vive no sul do Brasil e o segundo, no norte. Ainda assim, combinar certos pontos de inspiração de culturas diferentes tem a ver com a dispersão dos povos tirianos no passado mítico, já que eles teriam uma origem em comum.
Ibiquarambó é um termo inventado, a partir das combinações doidas que estou fazendo em tupi antigo. "Ybykûara" significa mina, e "pó" é mão (pela transformação gramatical, vira "mbó"). Ibiquarambó seria "mão da mina", já que eles agem como se fosse a própria terra se mexendo.
#Inktober2019 23 ※ Abataiaçu ※

História em: instagram.com/p/B39nen0hBxb/. Os abataiaçus (de aba, pessoa e taiaçu, porco), são outro nume que veio de uma inspiração em cosmologia kaingang, mas que tentei encaixar diretamente com a história tiriana.
Assim como os ibiquarambós de ontem, peguei uma passagem na mesma tese da profa. Juracilda, sobre o Krĩn'tódn, e extrapolei a partir dela. Dá pra ver ali o conceito de "dono" de lugares que também existe entre os Kaingang, assim como em outros povos originários brasileiros.
Como acontece com outros numes, o nome popular desse em Tiriana é o da língua geral de Etarama, que eu represento com o Tupi antigo — abataiaçu. No Quaraiaci, a Erapuana menciona o nome dele em Kenfrir, a região inspirada nos Kaingang: "kurindõ", como ela interpreta "krĩn'tódn".
Aproveitando: muito de Tiriana é inspirado em cosmologia Kaingang e Guarani-Mbya por causa do meu TCC em Design de 2017, que já mencionei. Foi uma exposição que rolou no Museu Municipal de Jaú - SP, que era inspirada justamente nos dois povos. Mais aqui:

coletivoluminar.com.br/blog/2017/05/2…
Tem até fotinha minha com a profa. Juracilda e o prof. Wilmar D'Angelis (pesquisador de línguas indígenas). É meio doido e incrível pensar que isso realmente aconteceu, pensando em retrospecto.
Mas voltando à Tiriana, lembrei que um dos Dormentes, Pai Siriana, por acaso é um cateto e também está na região de Kenfrir. Acho que é um dos meus preferidos, porque ele acabou dando origem ao Dia do Porquinho, o Dia das Crianças no sul. Mais aqui: instagram.com/p/Bo_8uaVhEPh/
#Inktober2019 24 ※ Andirá-namá ※

História em: instagram.com/p/B4AQKhghYMU/. Os andirá-namá (povo-morcego) não são exatamente um nume, ou uma raça de pessoas. Ninguém sabe o que eles são, até porque pelo visto desapareceram.
São inspirados na lenda que Câmara Cascudo registra como cupendiepes, homens-morcego que atormentavam os apinayé, povo originário do Tocantins. Curt Nimuendajú registra seu nome como kupen-dyêb, e eu acabei colocando um nome em tupi para distanciar e seguir a lógica de Tiriana.
No texto, Erapuana fala que eles vivem na Serra do Ronco; é o equivalente de onde hoje é a Serra do Roncador, no Mato Grosso, e fica bem pertinho de Aikuretama, a cidade de onde partiu o Estilhaço que devastou o continente, dois séculos depois do tempo da nossa viajante.
Erapuana menciona Mãe Sumicã que, na época, era só mais uma Dormente. Hoje boa parte das pessoas acredita que foi essa mãe-do-mato a responsável pelo Estilhaço, mas a verdade é outra. Ela estava tentando evitar, mas não houve testemunhas.

Historinha aqui: instagram.com/p/BpQgXSfhMd-/
No texto Erapuana também fala dos uigaruçus, que haviam acabado de ser inventados. São canoas imensas com asas mecânicas que, anos depois, seriam usadas para transportar as tropas sem fim de Aikuretama para dominar o resto do continente.

(e porque ornitópteros são legais demais)
Os uigaruçus se tornaram meios de transporte populares, sendo as araras os mais comuns entre os tipos originalmente desenvolvidos.

Viajar de um lado pro outro se tornou muito fácil, especialmente se você fosse nos assentos mais baixos e desconfortáveis, chamados... pau-de-arara.
Eu queria que existisse o CONCEITO de pau-de-arara em Tiriana: o transporte barato, atulhado de gente e muito usado em migrações improvisadas. Também queria que tivesse o mesmo nome. Mas não tem caminhões nesse mundo, então eu precisava de outra desculpa.
Hoje eu sinceramente não sei se criei os uigaruçus por causa do pau-de-arara, ou se depois decidi que eles teriam nomes de aves para justificar o termo.

Em tempo, uigaruçu vem de u'y (flecha) (guarani-mbya) + ygara (canoa) +ûasu (grande) (em tupi). As Grandes Canoas-flechas.
Na Tiriana atual, a maior parte das uigaruçu-araras voa muito baixo, por estradas comuns em vez de atravessar o céu, e mal pode ser chamado de transporte aéreo.
#Inktober2019 25 ※ Poacemiara ※

História em: instagram.com/p/B4CuMPjBLat/. Acabei atrelando a versão tiriana do Capelobo a um elemento do cenário que já havia estabelecido, Mãe Nanabaçu, a Grande Dormente com corpo de tamanduá.
Uma versão conhecida do Capelobo é a de um bicho-papão com cabeça de tamanduá, que persegue suas vítimas e suga seu cérebro. Ontem pesquisando sobre os kupen-dyêb pra fazer o meu povo-morcego, vi que no mesmo livro ("Os Apinayés", do Curt Nimuendaju) ele menciona os Cupelobo.
Os Cupelobo seriam um povo inimigo dos apinajé e viveriam no Lago Vermelho. No registro de Nimuendaju, ele cita a origem do nome como kupen-rob. "Kupẽ" em apinajé significa "não-indígena", no sentido de ser alguém de fora do seu povo.
Não encontrei "rob", mas sim "rop", que pode significar cachorro ou onça (imagino que algo genérico pra "animal feroz"). De Kupẽ-rop pra Capelobo é um pulo. Ainda pensei em usar o nome de alguma forma, mas acabei desistindo e foquei na parte do Lago Vermelho como inspiração.
Nanabaçu é uma dormente que envolve comunicação. A lenda do capelobo diz que ele pode ser um indígena muito velho que perdeu a vontade de viver e se tornou o monstro. Pensei em falta de comunicação e desespero, juntei com a Lagoa Vermelha e nasceu a Poacemiara.
O nome vem de poasema (gemido de dor) e îara (dono). A Dona dos Gemidos de Dor. Ela nasce de pessoas que cometem suicídio e caça os familiares e amigos que os abandonaram. A parte tamanduá vem da lenda brasileira, enquanto as araras vem do que eu já havia criado sobre Nanabaçu.
A Poacemiara nascia do Lago Vermelho, em Manacapurã, uma vez ao ano durante o dia do Paquaru (o equivalente tiriano do nosso Quarup). Hoje a região não existe mais porque foi tomada pelo mar, inundada depois do Estilhaço. Outros rios vermelhos surgiram por todo o continente.
Ilustrei Mãe Nanabaçu no Inktober do ano passado. Na época da Erapuana, a Dormente estava escondida sob um monte, mas agora que a região foi inundada ele se desfez, ela se moveu, abriu as asas e paira dormindo sobre o Mar Bravio. Tem mais aqui: instagram.com/p/Bo1gMRqhCLK/
#Inktober2019 26 ※ Bura Semacã, o Fim do Mundo ※

História em: instagram.com/p/B4FVGVuhqOb/. Bura Semacã é uma fera-profecia inspirada na Besta Bruzacã, uma visagem que aparece em "A Pedra do Reino", romance de Ariano Suassuna. Desde que li o livro ela nunca saiu da minha cabeça.
Erapuana registra a criatura no Quaraiaci por volta de 1380, mas profetas contemporâneos entendem que Bura Semacã veio ao mundo em 1556, há 22 anos, quando o Estilhaço aconteceu e fez o mar subir e invadir o continente, trazendo espíritos corrompidos das profundezas do oceano.
Essencialmente, Bura Semacã representa os perigos indescritíveis do Mar Bravio, que hoje não é mais navegável por conta dos monstros que surgiram do seu leito. Todos eles são entendidos como partes da Fera, como se ela fosse a dona do fim do mundo.
A ilustração que Erapuana "copiou de um cordel" vem diretamente de uma gravura que Suassuna fez pro romance. A ideia no caso é mostrar coisas de Tiriana que teriam sobrevivido no inconsciente coletivo e chegado a Ariano (sendo um passado mítico brasileiro e tal). Olha só:
Tem outra versão dela, e os textos que acompanham as artes são TUDO PRA MIM.
Mudei "Bruzacã" pra "Brazacã" pra ter o termo "brasa" no nome e se aproximar um pouco mais de "Brasil" ᵉ ᵉᵛᶦᵗᵃʳ ᵖʳᵒᶜᵉˢˢᵒˢ. Esse seria o nome vindo de Auretânia. Para os nomes em tupi e iorubá, eu tive que fazer um incrível malabarismo de palavras, porque queria coesão.
Pensei na sonoridade de Brazacã/Bruzacã, abri dicionários dos dois idiomas e fui procurando palavras que tivessem pronúncias parecidas e que ao mesmo tempo significassem algo importante para a construção da criatura no imaginário coletivo daqueles povos.
"Bura Semacã" vem de bur (emergir), asem (gritar) e 'aka (chifre). Significaria algo como "os chifres que emergem gritando" — não estou traduzindo e nem construindo frases reais, porque sei zero coisas, mas sim pensando no sentido que teria em Tiriana. Brazacã → Bura Semacã.
Na língua de Oruana, representada pelo iorubá, ela é chamada de Agbarasakan, que vem de àgbárá (enchente, torrente), asà (celebração) e kán (pingar, gotejar ou quebrar). "Aquela que celebra a quebra das torrentes". Brazacã → Agbarasakan.
Os dicionários que eu uso são o "Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil", do prof. Eduardo de Almeida Navarro, e o "Dicionário yorubá-português", do prof. José Beniste. Esse é mais complicado de usar porque é só iorubá-português, mesmo. Aí o Google ajuda.
#Inktober2019 27 ※ Obá Xibamba, Rei da Palha ※

História em: instagram.com/p/B4HrQ3Vhdrb/. Obá Xibamba é outra transposição direta de uma lenda brasileira: Chibamba, uma visagem envolta em folhas de bananeira girando e dançando. Até onde vi parece ser bem regional, do sul de Minas.
Fiquei vasculhando referências folclóricas em busca de possíveis conexões com Ossanha ou Obaluaiê, e me surpreendi porque não achei nada do tipo. Na verdade as origens são muito disparatadas, apesar de ser (pra mim) obviamente uma figura vinda da África para cá.
Souza Carneiro registra muitas histórias diferentes, assim como Câmara Cascudo. É comum que Chibamba seja relacionado à festa, à dança e à natureza, e o fato dele emitir algum um som característico, seja de cigarras, seja de um porco roncando. Mantive as cigarras.
Há quem o relacione também com bichos-papões, mas não é um lado pelo qual eu queria enveredar. Outra coisa que achei mais legal, e foi o caminho pelo qual segui, é que "bamba" é o mestre, o perito, o dono, rei das coisas, aqui no Brasil.
Tem versões que dizem que ele é um deus criador que resolveu ficar no mundo e aproveitar sua criação. Souza Carneiro fala que mulas-sem-cabeça, sacis e boitatás fogem de sua presença. Em Tiriana mantive ele com esse ar de mistério: ninguém sabe o que ele é, mas ele é.
O desenho em si é baseado na descrição comum: uma pessoa recoberta de folhas de bananeira. No relato de Erapuana, ela fala que as pessoas amontoam as palhas e do nada elas ganham vida. Isso eu fiz inspirado nos zangbetos, guardiões das terras iorubás de hoje, em Benim e Togo.
#Inktober2019 28 ※ Itaiubiara ※

História em: instagram.com/p/B4KluhAhm2k/. As itaiubiaras são inspiradas na Mãe do Ouro. Algumas versões da lenda brasileira falam que é uma mulher de fogo que indica a presença de ouro sob a terra, e que pode aparecer em forma de estrela cadente.
"Itaiubiara" vem de itaîuba (ouro) e îara (senhor, senhora). Senhoras do ouro, porque os iparás que recobrem seus corpos são dourados. Uso o termo "ipará" emprestado do Guarani: significa desenho, marca, grafismo.
Em Tiriana a queda de meteoritos é mais frequente que na nossa época, e muitas histórias giram em torno dos fragmentos de caem da noite, onde viveriam os Avós do Céu. As itaiubiaras têm formas humanas, com três cores de pele diferentes, e podem se transformar em cobras-corais.
Os Avós do Mundo que vivem nos horizontes, na crença namurana, têm cores de pele específicas: mulheres são vermelhas, homens são pretos e a cor branca representa o que não se encaixa nessas definições. As boipirangas (cobras-corais) são, por isso, vistas como animais sagrados.
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