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Um gatilho me fez lembrar certa história.

Era 2008, eu estava recém separado e buscando apartamento para alugar. Depois de muito procurar e só achar bomba, meu pai lembrou de um apartamento pequenino que ele tinha, bem localizado, num prédio bonitinho, mas tinha um problema...
...o apartamento estava alugado desde 2005 para uma senhora de uns 30 anos e sua filha pequena. Elas tinham deixado de pagar aluguel, já tinha ação de despejo, mas o processo nunca andou. Para piorar, soube que ela havia abandonado o apartamento em meados de 2007...
Dentro do imóvel ainda haveriam bens da inquilina, mas ninguém sabia o quê.

Comecei a correr atrás, fui falar com o juiz, expliquei a situação e ele despachou autorizando entrar no imóvel com um oficial de justiça, tomar posse do bem e, se tivesse bens, fazer inventário.
No dia determinado fomos eu, o oficial e um chaveiro. Abrimos as portas e ficamos impressionados com o que encontramos...
Parecia uma cena de guerra. Havia coisas pelo chão; havia panelas no fogão e, dentro delas, algo que havia sido comida, talvez arroz e feijão. Havia louça suja na pia, pratos ainda com resto de comida na mesa. Roupas jogadas por todos os cantos e gavetas remexidas.
A impressão que dava era que as duas, mãe e filha, tinham saído correndo, fugidas, como se tivessem visto o diabo. Na geladeira ainda havia redto de comida, tudo também devorado por vermes e insetos.

E nenhum sinal de mãe e filha.
Passado o susto e a impressão tétrica que tivemos, começamos o inventário.

Diferente do que ouvi falar, todos os pertences ainda estavam lá: roupas, bolsas, sapatos, jóias, fotografias e brinquedos.
Algumas roupas se desfaziam ao toque - era bizarro - principalmente as de tecidos sintéticos. Outras roupas estavam tão sujas que tinham carunchos. O certo de roupa suja ainda estava no banheiro, num fedor indescritível.
O Oficial foi bem franco:

- Daqui, pouco se aproveita...

Eletrodomésticos quebrados; louças e panelas carcomidas de vermes; roupas cheias de carunchos. Ele fez constar isso na certidão, destacando que nada se aproveitava, mas ainda havia os móveis...
Os de madeira também estavam ruins, mofados. Se salvava um conjunto de sala com mesa e oito cadeiras de ferro, mais umas poucas coisas.

Feito o levantamento, o oficial lavrou a certidão falando sobre os bens podres e fiquei com as chaves novas, mas ainda tinha um problema...
Precisava guardar os móveis num local seguro, pois, se a inquilina voltasse e pedisse seus bens, era minha obrigação restituir ou indenizar.
Com base na certidão do Oficial, joguei fora tudo que estava podre. Doei os pratos e coisas de cozinha, assim como as carcaças de eletrônicos. Os moveis bons, guardei no sótão da casa da minha mãe. Tive especial cuidado com as fotos, a única coisa dali que realmente tinha valor.
Reformei o apartamento, fui morar lá e a mulher jamais voltou a aparecer. Não nego que sempre pensava nelas e lembrava de como encontrei o apartamento, como se elas tivessem fugido ou sido levadas a força. Frequentemente ia ver os móveis dela e as fotos, pra ver se tava tudo ok
E um dia, resolvi procurar mais a fundo. Procurei pelo nome e CPF da inquilina em diversos bancos de dados, mas não tive nenhum resultado que me respondesse algo. O endereço, em todos os lugares, era o apartamento.
Até que um dia, por coincidência, tive um problema em casa e chamei um encanador. Ele prestava serviço pra vários moradores, então não relutei em chamar o homem. E quando ele chegou, foi logo me perguntando pela antiga moradora com um ar de estranhamento.
Eu expliquei que ela tinha sumido, que saiu no meio de noite sem ninguém ver e deixou todas as coisas dela, que tava tudo guardado na casa da minha mãe e que queria devolver, que nem fazia questão de cobrar os valores, mas ninguém sabia dela, ao que ele disse:

- eu sei dela...
Bem, ele não sabia dela agora, mas sabia da história dela, e tudo que ele contou batia bem com a situação que encontrei, a casa revirada, as coisas abandonadas.
Ele contou que a mulher era muito, muito bonita - mas eu já sabia disso vendo as fotos que estavam em meu poder - e que ela era amante de um dos manda-chuvas do tráfico no Jurunas.
O cara tinha ligações com milícias e todas as bandas podres do governo, era um figurão, e era ele quem pagava o aluguel e todos os gastos da amante. E, como tantos, era ciumento, possessivo, violento...
Já tinha mandado bater em muito cara que tinha ousado olhar a mulher e, sobretudo, tinha um ciúme doentio do relacionamento anterior dela, e descontava tudo no fruto dele, a menina.
Isso obviamente acendeu um alerta muito escroto em mim, pois o perfil do cara condizia perfeitamente com o pior dos cenários, que casava de forma horrenda com o que encontrei quando entrei no apartamento.

Decidi dar um passo além e ir um pouco mais fundo na história.
Pedi para o escritório o endereço da fiadora, que morava pertinho, e esperava que ela tivesse alguma informação sobre a mulher e a filha, porque, sinceramente, neste momento eu só via opções bem ruins.
Ou ela tinha cansado do cara, da violência, do ciúme e da criminalidade; ou o cara, usando todo seu poder, tinha dado fim nas duas.

Aquelas duas opções, na minha cabeça, eram as únicas que faziam sentido diante do apartamento destroçado.
Mas essa pista, como todas as demais, não deu em nada. O endereço da fiadora não existia; ninguém conhecia o nome na vizinhança... por fim, o CPF existia, o nome batia, mas num endereço no Rio Grande do Sul...
O tempo passou, minha angústia foi aplacando e a vida seguiu. Alguns móveis se perderam no tempo, outros, acabaram também sendo doados. A mesa e cadeiras de ferro acabaram em um pátio da casa de minha mãe.
Por fim, as fotos, numa dessas chuvas torrenciais de Belém, acabaram molhando num vazamento de telhado. Consegui salvar umas poucas, mas desbotadas, e nem sei mais onde estão.
Na minha cabeça, torcia para que aquelas duas tivessem fugido, cansadas daquela vida ruim, e que tivessem tido sucesso e estivessem felizes em qualquer lugar do Brasil, longa daquele bandido.
Torcia por isso, porque a outra opção era muito triste: as duas arrancadas de casa, deixando para trás toda uma vida de mãe e filha, e jóias e roupas e documentos, para acabar servindo de exemplo ao ego de um mau caráter.
Bem, como podem ver, é uma história mal resolvida da minha vida, e só posso esperar que o desfecho tenha sido o menos ruim. Penso sempre nas duas e em tudo que ficou para trás, ainda mais depois de um último fato ocorrido quando ainda morava no apartamento.
Era de noite, tinha chegado do trabalho e estava de cueca no sofá, relaxando, quando tocou o interfone...

O porteiro anunciou que uma mulher estava na portaria e queria falar com a moradora do 601, mas o nome não batia com o meu, claro. Era o nome da antiga moradora.
Pedi para falar com ela. A mulher estava nervosa e perguntou pela fulana, mas uma coisa me chamou a atenção: ela perguntou pelas coisas da fulana.

Quem anda por aí procurando um velho conhecido e pergunta pelas coisas desse velho conhecido?
Eu disse a ela que os bens da antiga moradora estavam todos guardados em local seguro, inclusive as fotos, e que eu queria muito devolver. Que nem fazia questão da dívida, mas queria devolver tudo, sobretudo as fotos.
Pra mim, poucas coisas são mais importantes do que fotografias. Na caixa daquela mulher tinha a gravidez dela, o nascimento da menina, o primeiro dia de aula e os dias felizes de férias...

A mulher engasgou quando me ouviu e tive um pressentimento estranho, que me alegrou.
Eu perguntei a ela se sabia da antiga moradora e ela não falou nada. Como ela relutava, eu disse que desceria para conversar, que só ia me vestir e desceria.

Não demorei nem cinco minutos, mas quando cheguei lá não havia mais ninguém.
O porteiro disse que, assim que ela desligou o interfone, se despediu a foi embora. E que havia uma mocinha esperando por ela na grade da rua...
O porteiro era novo, entrou no prédio meses depois de eu me mudar, então não teve como afirmar se era ou não a antiga moradora. Mesmo com as fotos ele não reconhecia ela, e a portaria não tinha câmeras...
Aí me resta a esperança de que essa mulher e a filha estejam vivas, escondidas talvez, fugidas, e não mortas e enterradas em cova rasa por conta de um traficante violento.
Gosto de pensar que, naquela noite, ela teve coragem de voltar naquele prédio pra tentar reclamar algo seu que fosse, e que o medo da impediu de me ver...

É isso, ou não é isso, e creio que jamais terei a resposta.
O gatilho do qual falei no início: Chernobil... hoje, assistindo a um episódio, vi as casas abandonadas, as roupas no varal e comida no prato, e me veio toda a cena da entrada no apartamento, claramente. Contei então a história pra Livia e resolvi contar pra vocês.
O nome da mulher, quase 12 anos depois, não lembro, mas tenho como encontrar. Basta pesquisar pela ação judicial, que deve ter registro no site do TJ.
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