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Lucas Mafaldo @lucasmafaldo
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Um fio não-político para essa manhã de sábado.

Algo que evoluiu muito na minha mente ao longo dos anos foi como lidar com dinheiro. Levei muito tempo para superar alguns vícios do meu contexto de origem e da cultura média brasileira em geral.
Cultura é aquela coisa que te envolve antes que você comece a entender o que está acontecendo. Leva um bom tempo até você distinguir o que está fazendo por hábito, por imitação passiva do ambiente, por reações emocionais ou porque é uma boa ideia mesmo.
Minha cultura de origem é a classe média brasileira dos anos 90. É a geração que ficou empolgadíssima com o aumento do poder de compra, com a estabilização da moeda, com a possibilidade de tomar crédito e com a abertura da economia ao exterior.
Hoje me parece que essa geração desenvolveu alguns hábitos compreensíveis, mas também prejudiciais no longo prazo -- o que se explica tanto pelo "dinheirismo" da nossa sociedade como pela súbita mudança do ambiente econômico.
O brasileiro saiu da hiperinflação "atordado" economicamente. Fica muito difícil fazer cálculo de longo prazo quando o valor dinheiro evapora do dia para a noite, o que destruiu a racionalidade econômica de uma geração, espalhando pensamento mágico por toda a parte.
É só conversar com alguém com mais de sessenta para ouvir expressões do tipo: "comprei aquele terreno barato, custava uns dois carros populares". Ou seja, a unidade de cálculo é um bem depreciável, de valor vago. Fica quase impossível calcular o retorno real.
Ao mesmo tempo, o Brasil passou por um forte enriquecimento, com uma geração vendo seu poder de compra se multiplicar em relação os seus pais.

Isso também tornava o cálculo difícil: como julgar se a televisão X cabe no seu orçamento se seu pai nem geladeira tinha?
Para comparação, na sociedade norte-americana, a população passava por um enriquecimento secular constante, mas de poucos dígitos de cada vez. Logo, você podia esperar ter 10% mais renda mais do seu pai... mas não 10.000% a mais, em uma nova moeda.
Além disso, a forte centralização econômica ocasionava choques fortes e repentinos. Quando você tem praticamente um país continental indo financiar casa na mesma Caixa Econômica, uma mudança de governo pode alterar os planos habitacionais de milhões por vários anos.
A mesma coisa ocorre com mudanças buscas no câmbio, que trazem e levam embora produtos importados.

Nesse cenário, esse tipo de pensamento se torna comum: "seu eu não comprar essa casa/computador/roupa eu não sei quando vou poder comprar de novo".
Aí entra também a dimensão dinheirista: nesse ambiente, os bens de consumo dizem muito sobre a posição social de cada um. Logo, há uma pressão para comprar bens para telegrafar status.

Isso é especialmente importante em uma sociedade com instituições frágeis, pois parecer ser...
... da elite (mesmo sem ser) se torna uma proteção valiosa. Logo, a pressão por consumo aumenta bastante.

Nesse ambiente, é compreensível que as pessoas não apenas consumam demais, como que também consumam mal (isto é, privilegiando status e não coisas de valor durável).
Esses vícios acompanharam a sociedade na onda de crescimento dos 2010s, particularmente impulsionados pela "chiqueza" que é fazer compras no primeiro mundo. Para quem tinha dinheiro para viajar e furar as tarifas de importação, torrar tudo em uma viagem começou a fazer sentido.
Mas aí entram os problemas: uma cultura de baixa formação de capital é perigoso em um período de crise. Na hora que as pessoas começam a perder dinheiro, a ausência de poupança não é implica apenas na redução de consumo: pode significar a ruína.
Foi isso que abriu meus olhos para a importância da não-linearidade das finanças. Perder metade da renda não significa necessariamente reduzir metade do padrão de vida. Pode significar INVIABILIZAR a vida, caso a pessoa não possa manter teto, refeições, remédios.
Porém, por esse motivo mesmo, também não dá para chegar para todo mundo e dizer "poupem 10% da renda por mês", como quem tem mentalidade de contador o faz, pois talvez os 10% simplesmente sejam inviáveis.
Por exemplo, esses 10% talvez signifique morar em um lugar onde o transporte público vai comer duas horas a mais por dia, inviabilizando outros projetos.

Por isso, nessas crises, a sociedade começa a depender principalmente de transferências familiares, para evitar a ruína.
Essas transferências ocorrem o TEMPO TODO e esses laços familiares possuem um peso enorme na trajetória individual de cada pessoa. Não é apenas a combinação "mérito pessoal" + "auto-interesse" que geram resultados. Há um peso ENORME para o capital social de cada pessoa.
Ao mesmo tempo, essas redes sociais também possuem um custo -- especialmente em tempo de crise. É o velho "quem come do meu feijão, apanhas do meu cinturão". Na medida em que o sujeito começo a depender das transferências do avô, o avô também dá mais pitaco na vida dele.
Essa tensão social coloca uma pressão enorme em casamentos, nas famílias estendidas, nos círculos de amigos. O dinheiro aí passa a ter um valor maior do que o simples dinheiro: é também tranquilidade, saúde mental, capacidade de voltar a trabalhar.
Por esses motivos, passei a achar importantíssimo tanto o hábito de poupar agressivamente no plano individual, como também os atos de ajuda mútua no plano social. Se as pessoas não se ajudarem, todo mundo cai junto.
Nesse sentido, a ajuda no nível social, voluntário (não-estatal) é especialmente importante, pois ela é muito mais concentrada no alvo certo. Porém, eu não desprezo os programas sociais, como muitos liberais. Eles podem servir como uma rede de proteção adicional.
Um sistema de tributação progressiva que realmente isente os mais pobres me parece correto, por exemplo. O problema é saber desenhar isso bem, sem criar custos desnecessários e incentivos destrutivos (como quase sempre ocorre no Brasil).
Enfim, o que quero dizer é o seguinte: (i) precisamos priorizar um fundo de emergência (mesmo que não rendam quase nada, pois sua função é servir de rede de segurança); (ii) precisamos enormemente dos outros tanto para sair das situações de crise como descobrir oportunidades;
(iii) as políticas públicas podem ser planejadas para aliviar essas situações em vez de complicá-las ainda mais. Não é fácil, mas não vejo outro caminho.
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