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Sancionada a Lei 13.964/2019, com alterações legislativas e criação de institutos jurídicos que integram o chamado Pacote Anticrime. Neste fio, destaco as adições dos arts. 4-A a 4-C na Lei 13.608/2018, versando sobre a figura do reportante do bem ou “whistleblower”.
De origem anglo-saxã, o whistleblower encontra base normativa nos Estados Unidos desde o século XIX, com a promulgação do False Claims Act, que recompensa denunciantes (ações qui tam) que auxiliem na revelação de fraudes em contratos governamentais.
Com a emergência da sociedade de risco, a figura do reportante ganha prestígio e abandona o estigma de caçador de recompensas, ao passo que o escopo das denúncias estende-se para matérias que vão além da corrupção, alcançando desde riscos nucleares até casos de assédio sexual.
Hoje, o whistleblowing é regulamentado na quase totalidade dos países desenvolvidos e fortemente recomendado pela OCDE e Transparência Internacional como mecanismo eficaz de prevenção e detecção de práticas corruptivas nas organizações públicas e privadas.
Episódios notórios de revelação de ilicitudes envolvem whistleblowers, como nos casos da Enron (2001) e WorldCom (2002). Sherron Watkins, ex-vice presidente da Enron, alertou seus superiores sobre as fraudes contábeis que vinham ocorrendo, meses antes do colapso da companhia.
Em suma, o reportante é aquele que relata informações que acredita ser evidência de crime, violação de regra de trabalho, conduta ímproba ou antiética, atos de corrupção ou qualquer outra atividade ilegal ou irregular que deve ser de conhecimento das autoridades responsáveis.
Na regulamentação promovida pela Lei 13.964/2019, o conteúdo do relato compreende “crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos e ações e omissões lesivas ao interesse público”. Me parece positiva a hipótese aberta que encerra o dispositivo.
O mesmo dispositivo impõe a instalação de unidades de ouvidoria para o recebimento de denúncias, no entanto, tal dever se restringe aos órgãos da administração pública. Na Diretiva aprovada em 2019 pela União Europeia, a imposição estende-se aos setores público e privado.
Segundo a Diretiva da União Europeia, a obrigação de criação dos canais de denúncia se aplica às empresas com mais de 50 empregados e aos municípios que tenham mais de 10.000 habitantes. Além disso, estabelece um escalonamento dos canais (internos e externos) de revelação.
Segundo pesquisa realizada pela OCDE (2018), os fatores que mais pesam na decisão sobre denunciar ou não condutas improprias são: (i) a percepção de que não resultará em punição aos responsáveis (ineficácia dos canais) e; (ii) o medo de retaliações por colegas ou superiores.
Nesta esteira, é essencial que a regulamentação legal preveja mecanismos que reforcem a eficiência das unidades de ouvidoria na apuração das denúncias recebidas e medidas de tutela ao reportante contra retaliações injustificadas.
No primeiro caso, faltou na Lei 13.964/19 previsão mais específica quanto às normas procedimentais gerais de apuração e andamento das denúncias, bem como a possibilidade de acompanhamento pelo reportante. A Diretiva da UE confere um prazo de 30 a 60 dias para a primeira resposta.
Quanto à tutela contra retaliações, a Lei (art. 4-C) vai bem ao estabelecer um rol exemplificativo de medidas protetivas no âmbito do vínculo funcional (ex.: demissão arbitrária), além da isenção de responsabilidade civil ou penal em virtude da denúncia (waiver of liability).
Em fato, verificada a boa-fé objetiva do denunciante, é fundamental inseri-lo no espaço mais amplo possível de proteção jurídica.
A principal ferramenta de proteção do reportante, contudo, é a confidencialidade do seu relato, ou seja, o resguardo da sua identidade pela unidade de ouvidoria ou correição responsável pela apuração dos fatos denunciados. É diferente do anonimato (denúncia apócrifa).
A Lei não se aprofunda quanto ao valor probatório do relato confidencial. A jurisprudência do STF já está pacificada, porém, quanto à carga probatória da denúncia anônima, cuja validade deve ser corroborada por averiguação preliminar antes da abertura de PAD ou Inquéritos.
O art. 4-B prevê o seguinte: “o informante terá direito à preservação de sua identidade, a qual apenas será revelada em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos”. Tal direito já encontra regulamentação através do decreto 10.153/2019.
O art. 4-C, §2º prevê uma compensação cobrada de eventuais danos materiais decorrentes de atos de retaliação. Inovação inspirada no ordenamento inglês (UK Bribery Act), que também dispõe sobre compensação financeira ao reportante, embora não em dobro.
Por fim, cabe destacar a aprovação do art. 4-C, §3º, que estabelece uma recompensa (prêmio) pecuniária pela procedência do relato, no montante equivalente 5% do produto eventualmente recuperado. O ponto é polêmico, e sobre ele cabe algumas considerações adicionais.
O 1º ponto é a virada cultural que isso representa. Há pouco mais de 3 anos, quando da votação na Câmara das 10 medidas contra a corrupção, o destaque relativo ao whistleblower foi solenemente rejeitado, e alcunhado de “deduragem remunerada” pelo Dep. Edmilson Rodrigues (PSOL-PA)
2) a previsão de recompensas financeiras não encontra adesão majoritária entre os países da OCDE. Dois casos, porém, são destaques positivos neste sentido: Estados Unidos e Coreia do Sul, os quais detém programas bem sucedidos de concessão de prêmios pecuniários pelas denúncias.
Nos Estados Unidos, as recompensas variam de 10% a 30% do montante recuperado, e estão previstas, dentre outros, no âmbito da Receita Federal (IRS), da Securities and Exchange Comission (Sarbannes-Oxley Act) e pelo clássico Flase Claims Act. Já foram pagas fortunas a reportantes.
O prêmio em dinheiro, no entanto, é elemento acidental (e não determinante) para os programas de proteção e incentivo aos whistleblowers. Há outras formas de reconhecimento e de recompensa àquele que exerce a “resistência ética organizacional” e decide denunciar atos antiéticos.
Exemplos: medalhas de mérito; reconhecimento público; promoções funcionais. Não há correlação específica entre a qualidade dos relatos e a previsão da recompensa financeira.
3º: é provável que o art. 4-C seja objeto de regulamentação futura, na medida em que mostra-se necessário declinar critérios mais objetivos e outros parâmetros para a concessão de recompensa, sob pena de incentivar denunciações caluniosas, num clima de “corrida pelo ouro”.
A Securities and Exchange Comission (CVM norte-americana) já concedeu um total de US$ 381 milhões em premiações a 62 whistleblowers, desde a inauguração do programa legal de incentivo, em 2012.
Whistleblowers são elegíveis para o recebimento da recompensa quando fornecem informações “originais, tempestivas e críveis” que levem a ações efetivas de enforcemente, e que resultam em ressarcimento ou aplicação de sanções superiores a US$ 1 milhão.
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