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O que um conto fantástico francês com mais de 130 anos que provavelmente inspirou H.P. Lovecraft em "O Chamado de Cthulhu" tem a ver com o Brasil de então - e de agora? Segue o cordel aí embaixo para sacar.

Alerta: contém spoilers
Guy de Maupassant (1850-1893) foi um escritor naturalista francês. Contemporâneo de Machado de Assis, ele ficou famoso por seus contos e novelas. Morreu jovem e sifilítico, em um asilo de alienados, após complicações de uma tentativa de suicídio.
pt.wikipedia.org/wiki/Guy_de_Ma…
Um dos contos mais famosos de Maupassant se chama 'O Horlá' (em francês, 'Le Horla'), que reproduz o diário de um homem burguês que julga se encontrar com uma entidade sobrenatural, o Horlá, palavra que tem a mesma sonoridade de como se diz, em francês, "Lá fora".
A história começa com o narrador descrevendo um belíssimo dia de primavera no qual ele vê chegar, pelo rio Sena - que fica próximo de sua casa - um paquete brasileiro de três mastros. Deste dia em diante o personagem não terá mais paz.
Ele passará a ser assolado pela a presença - ou será apenas a sua imaginação? - de uma criatura sobrenatural que ele crê ser invisível e que sugaria a sua energia vital e beberia a água ou o leite de sua casa. O narrador, quase no fim da história, o nomeia como 'O Horlá'.
Conta-se que H.P. Lovecraft gostava desse conto e ele o teria inspirado parcialmente na ideia de uma entidade alienígena que não poderia ser vista mas seria capaz de perturbar e influenciar a mente humana. Como se sabe, esta ideia está no centro das histórias de Cthulhu.
Quase no fim da narrativa, após idas e vindas e muitas dúvidas, o perturbado herói lê a Revista do Mundo Científico e descobre que algo de muito estranho que está acontecendo no Brasil, : "Uma notícia um tanto curiosa nos chega do Rio de Janeiro. "
"Uma loucura, uma epidemia de loucura, comparável às demências contagiosas que atingiram os povos da Europa da Idade Média, grassa neste momento na província de São Paulo. Os habitantes apavorados deixam suas casas, desertam de suas aldeias, abandonam suas culturas..."
"...dizendo-se perseguidos, possuídos, governados como gado humano por seres invisíveis, embora tangíveis, espécies de vampiros que se alimentam de suas vidas durante o sono, e que, além disso, bebem leite e água, sem parecer tocar em qualquer outro alimento."
"O professor Dom Pedro Henriquez, acompanhado de diversos pesquisadores médicos, partiu para a província de São Paulo a fim de estudar in loco as origens e as manifestações dessa surpreendente loucura, e de propor ao imperador medidas que lhe parecerão as mais adequadas."
E aí o espantado francês se dá conta de que foi contaminado quando o barco brasileiro passou pelo rio Sena. A peste vinha do Brasil, vinha da América!
Não está inteiramente claro o que exatamente Maupassant queria simbolizar com esta peste de vampiros que vinham do Brasil. Alguns entendiam que poderia simbolizar a doença da qual padecia, a sífilis, que, de fato, não existia no Velho Mundo até a descoberta das Américas.
Porém, o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) apontou que o período em que Maupassant e seu personagem viveram marca o fim de uma era. A revolução tecnológica havia criado o telégrafo, a fotografia, o motor a vapor, a automação industrial.
pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_S…
Os humanos não estavam completamente prontos para lidar com as novas tecnologias, que mudavam o dia-a-dia e reconstruíram completamente as relações entre as pessoas no século XX que estava para começar.
Parte desse choque cultural, dizia Sevcenko, era percebido como algo novo e de fora, e pode ter levado à fratura do tecido social que levou à Primeira e, depois, à Segunda Guerras Mundiais. Coincidentemente ou não, no séc. XXI, a tecnologia parece nos passar a perna de novo.
Incapazes de lidar com a velocidade em que a fofoca pode se multiplicar pelos meios digitais, mentiras são absorvidas como verdades e fatos científicos não são mais considerados como sólidos. É uma era propícia para o nascimento de mitos e o florescimento de vampiros.
Em busca de segurança em um mundo assustador, nos apegamos à religião e ao nacionalismo, esquecemos a força da razão e desprezamos a ciência. Assustadoramente, parecemos novamente estarmos sendo "governados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis".
Não tenho ilusões de que esse cordel irá abrir os olhos de ninguém. Os que são consumidos pelo Horlá do século XXI não veem as mãos invisíveis que enforcam seus pescoços. Mas aos que veem é importante lembrar que seus olhos não podem se fechar para os riscos que estamos correndo.
Se você quiser ler o conto 'O Horlá', de Guy de Maupasant, na íntegra e dar os seus próprios palpites sobre o que ele pode significar, ele pode ser encontrado online aqui: nefasto.com.br/o-horla-guy-de…
Se quiser ler esse cordel todo em uma página só, o @threadreaderapp irá compilar tudinho aqui para você. Eu só preciso dizer unroll para ele.
[Atualização] Depois de ler a nota de tradução de @SjFlaks para a última edição de ‘O Horlá’ em português, editado pela @GruaLivros, me dei conta de que a tradução literal correta de “Horla seria algo como “Aí fora” (e não “Lá fora”). Perdoem a falha deste francófono simplório.
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