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Hoje os chineses celebram o 70º aniversário da Revolução Chinesa! Considero esse um dos eventos mais marcantes do século XX e, considerando a força da economia chinesa em âmbito global, um dos mais marcantes do mundo.

Em homenagem, segue um fiozinho e uma indicação de texto.
1) Para quem é de esquerda, gostando ou não do legado da Revolução Chinesa, ele é muito impressionante. Alguns dados que eu costumo lembrar em aula:

No final do século XIX, a população chinesa era de cerca de 300 milhões de pessoas. 90 milhões eram considerados viciados em ópio.
2) Desde 1911, esse era um problema do Estado chinês republicano (afinal, quase 1/3 da população era considerada viciada). Mas somente com o governo do PCCh a coisa se estabilizou.

nytimes.com/1989/11/18/opi…
3) Foi violento, sem dúvida. Traficantes foram condenados à morte e viciados sofreram internações compulsórias.

Mas vale lembrar: a inserção do ópio e seu consumo de massas foi fruto de um projeto específico do imperialismo inglês na região.
4) Para além disso, a RPC criou um governo de reconhecimento multiétnico, tal como era o desejo dos republicanos de 1911.

Geralmente o pessoal lembra do caso do Tibet ou da perseguição das minorias étnicas nas partes da Ásia Central.
5) Mas a bem da verdade, a política do RPC reconhece a diferença étnica, mas não o direito de auto-governo. A estrutura do partido e seus órgãos deliberativos precisam ser respeitadas em todo o território. O que, claro, agrava tensões...
6) Só que até 1949, a China era um país fraturado. Desde a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842) até o fim da Guerra Civil (1948), o dragão chinês se viu mutilado por todas as potências ocidentais - e até mesmo orientais. Todo mundo tirou uma casquinha do território chinês.
7) Sempre gosto de lembrar da Revolta dos Boxers (1899-1901) em aula. É um dos casos mais curiosos do imperialismo antes da 1ª GM: nessa guerra, as oito principais nações que se enfrentariam globalmente entre 1914-1918 se uniram contra os revoltosos chineses.
8) Essa insólita aliança entre Inglaterra, Alemanha, França, Rússia, Império Austro-Hungaro, Japão, Inglaterra, Itália e Estados Unidos (e também Holanda, Bélgica e Espanha) minou a possibilidade de resistência e de um proto-nacionalismo de caráter popular na China.
9) A partir daí, a integridade territorial virou uma quimera dos republicanos. Mas com a morte de Yuan Shikai (1916) e traição do Kuomintang (1927), a China seguiu sendo um território "em fatias".

Somente com a Guerra Civil, o PRC conseguiu unificar o território chinês.
10) O continental, é claro. A ilha de Taiwan refugiou as forças nacionalistas e Hong Kong só se juntou ao território chinês em 1997.

A ideia de unidade territorial passou a ser inclusive um marco nas diretrizes do partido.
11) Alguns historiadores como Jonathan Spence falam que a partir dos anos 1950, o PCCh dá uma virada a passa a endossar as narrativas míticas sobre a centralização política do antigo "reino do meio".

Obviamente isso gerou tensões no campo.
12) Grande parte do êxito da Revolução Chinesa se deu pela sua intensa capilarização e pela estratégia maoísta de conhecer profundamente a realidade camponesa para instrumentalizá-la para a luta. Políticas como os "Três pontos de disciplina" e os "Oito pontos de atenção"...
13)...foram cruciais para a vitória do EPL na guerra civil e para o crescimento do partido. Depois da Longa Marcha, eram pouco mais de 40 mil membros sobreviventes no PCCh em toda a China. No final da Segunda Guerra, esse número se elevou a 1,5 milhão de militantes.
14) Logo, para muitos que participaram dessas lutas, a defesa do espaço comunal e da autonomia local era um fator importante e que o partido não poderia negligenciar.

Spence e Fairbanks puxam essa discussão sempre para aspectos mais "culturais" chineses.
15) E embora importante, faz falta uma narrativa que enfoque justamente como, entre 1949 até 1976, a China esteve em constante luta política pelos rumos de sua revolução. A China monolítica e totalitária de Mao é uma construção ocidental...
16) Construção tão artificial quanto a visão ocidental sobre a Revolução Cultural, que mobilizou uma série de paixões na França e nos EUA, sem que houvesse clareza das disputas políticas em jogo.
17) Spence tem uma leitura muito psicologizante que me incomoda bastante. Mas se lemos autores como Jiang Hongsheng, podemos ter uma visão "de baixo" da Revolução Cultural e como ela despertou sonhos de uma profunda democratização política na China.
18) Geralmente, contudo, se lembra do terrível legado das grandes fomes - em especial as que derivaram do Grande Salto, uma política econômica desastrosa e voluntarista que resultou na morte de milhões de pessoas.
19) Acho difícil não responsabilizar Mao pelos erros do Grande Salto (a própria cúpula do PCCh fez isso), mas é preciso entender que ela não foi uma política deliberada de genocídio, mas fruto de um voluntarismo temerário daquele período da revolução.
20) Não se trata, contudo, de aliviar a barra de Mao Zedong nessa. Mas é destacar que políticas deliberadas de fome estavam sendo postas em prática, nessa época, pela Inglaterra na Índia (com as bençãos de Churchill).
21) O legado chinês é ainda bastante contraditório para além de Mao. Na política externa, a independência levou a tensões com os soviéticos e até mesmo uma aproximação com os americanos a partir de 1972.
22) Desde 1978, com a criação das primeiras ZEEs, a China mergulhou em contradições a partir de uma intensa urbanização e de sua entrada oficial na força de trabalho global. Um livro bacana para ver algumas dessas contradições é o da @_pinheira sobre China.
23) Para uma leitura bacana sobre as polêmicas de protesto civil na China desde os anos 1980, é legal ver os livros de Elizabeth Perry. Na falta deles no Brasil, contudo, o livro que a @editoraboitempo editou com textos de Perry Anderson e Wang Chaohua é uma ótima adição.
24) Nessa leitura comparativa que Anderson propõe, tem também o Domenico Losurdo, que é legal. E Giovanni Arrighi e Kenneth Pomianz, sobre a economia chinesa, ainda são hors concour!

Infelizmente, no Brasil temos ainda poucos estudos sobre a história da China.
25) Falta levantamento sobre a própria historiografia chinesa e seus movimentos de renovação nas últimas décadas, seu diálogo com historiadores ocidentais e seus diálogos com as perspectiva pós-coloniais.
26) Para piorar, muitos dos livros que temos sobre a história da China resolvem criar uma "grande história", que mergulha na ancestralidade do Reino do Meio para dar sentido a China contemporânea. Há ônus e bônus nisso, mas o problema é que temos uma boa quantidade de manuais...
27) Mas poucos livros mais específicos. Cito, contudo, a obra de Christine Dabat, "Mulheres no movimento revolucionário chinês (1849-1949)", que acho que merece destaque justamente por não se restringir ao conteúdo de "manual".
28) E eu disse que ia acabar esse fio com um texto de indicação, né? Bom, para os marxistas do meu coração, leiam Isaac Deutscher sempre. E leiam o texto dele sobre maoísmo também (infelizmente nunca traduzido no Brasil):

marxists.org/espanol/deutsc…
E é isso, viva os 70 anos da Revolução Chinesa. Pela atenção, "xiexie". :)
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