Thread by @lucasmafaldo

Algo que eu acho muito desafiador em ciência política -- e que quase todo mundo nem parece considerar um problema -- é descobrir como encaixar fenômenos locais e mundiais.

O melhor exemplo dessa tensão é, por exemplo, as comparações entre Bolsonaro e Trump.

É inegável que há algo que os aproximam: ambos participam de algo que poderíamos chamar, sendo mais descritivos do que pejorativos, de uma direita populista. Eles procuram usar os novos meios de comunicação para se dirigir diretamente às massas defendendo políticas que...

... não fazem parte do consenso do establishment.

Porém, eu não vejo a linha de causalidade entre um fenômeno e outro. Cada um me parece nascer de uma dinâmica própria. No máximo, há novas tecnologias que favorecem essa comunicação direta.

Os debates no primeiro mundo, no entanto, têm reforçado a ligação entre esses fenômenos para vender a narrativa que estamos passando por uma época de radicalização que pode desembocar em novos modos de governos autoritários.

Porém, o problema com a tentativa de caracterizar esses governos de autoritários é que eles... defendem os valores que correspondem ao que a maioria (ou ao menos a maior pluralidade) realmente acreditam. Ou seja, em certo sentido, eles são perfeitamente democráticos.

O outro lado dessa equação é que sempre houve bons motivos para temer a vontade das massas. Por isso mesmo, muitas pessoas preferiam se definir como "republicanos" em oposição à "democratas": torcendo que os mecanismos institucionais servissem para "filtrar" a vontade popular...

... freando os impulsos mais violentos da população. No entanto, essa perspectiva esbarra em outro problema clássico: quem nos protege dos guardiões? O que impede esses mecanismos intermediários de se tornarem, eles próprios, opressores?

O que me parece óbvio é que não há mecanismo institucional garantidor. A questão mais relevante não é saber se o que impera é a vontade de muitos ou de poucos, mas o quanto essa vontade corresponde a uma ordem justa. E é essa questão que fica escondida ao debatermos quem é...

... realmente "democrático". É um modo de evitar o confronto de visões de mundo.

Dito isso, é claro que acho que mecanismos são importantes (já devo ter escrito mais de mil páginas sobre isso). Mas eles não são garantias de nada, pois precisamos de seres humanos para acioná-los.

E isso me leva a outro ponto que une Trump e Bolsonaro: eles possuem claramente uma personalidade própria. Eles não parecem ter sido planejados por um marketeiro. Isso talvez explique parte do sucesso: o povo cansou de ver políticos pré-formados, que parecem saídos de filmes.

A ordem progressista que havia vencido nos últimos anos é, principalmente, uma ordem de mecanismos institucionais: é a crença de que uma série de comitês, povoados por uma multidão de técnicos anônimos, é nossa melhor aposta para resolver problemas coletivos.

Esses novos líderes parecem se destacar por oferecem algo que um mecanismo não podem oferecer: como eles são muito individualizados, eles podem ser responsabilizados. É mais fácil confiar em um ser humano falho do que em um comitê.

Dito isso, fora dessas analogias, ainda vejo cada país e região seguindo trajetórias bastante únicas. Se fosse apenas o poder das personalidades individuais, Ciro Gomes deveria ter ido para o segundo turno no lugar de Haddad. Há também outras forças em jogo.