Thread by @Diogo_Faria90

O 25 de abril e a viragem a norte do futebol português: os factos e algumas hipóteses

O facto de o futebol português dos últimos 45 anos ser muito diferente do que antecedeu o 25 de abril de 1974 é consensual. As explicações para as mudanças é que são objeto de grande polémica.

O desconhecimento do que se passou é explicável pelo escasso desenvolvimento da historiografia sobre o futebol, sobretudo após o 25 de abril. Os estudos que existem não são esclarecedores sobre a evolução institucional, económica e social dos clubes e das competições.

Nos últimos dias dediquei uma parte do meu tempo a tentar compreender este fenómeno. Sistematizei alguns dados e pensei em algumas hipóteses para explicar os factos objetivos, que só poderão ser confirmados ou infirmados por estudos aprofundados.

Há pelo menos cinco ângulos de observação do futebol português que confirmam a viragem a norte após 1974: 1) a geografia dos clubes que participaram na primeira liga; 2) os vencedores do campeonato; 3) os vencedores da Taça de Portugal; 4) o “4.º grande”; 5) o sucesso europeu.

1. Durante o Estado Novo, cerca de metade das equipas que participavam no campeonato eram provenientes dos distritos de Lisboa e de Setúbal (49% do acumulado de participações). Após 1974, esse peso desce drasticamente (28%).

Em sentido inverso, após 1974 cresce bastante o peso de equipas dos distritos do Porto e de Braga no campeonato: aumenta de 29% durante o Estado Novo para 41% em democracia.

Em democracia regista-se ainda o alargamento da geografia do campeonato, com as primeiras participações na liga de equipas dos Açores, da Madeira, de Viseu e de Vila Real. Só em Évora se regista o fenómeno inverso: participação no campeonato durante o Estado Novo e nunca após 74.

2. Os dados sobre os vencedores do campeonato também são impressivos: até 1974, três equipas de Lisboa venceram 35 das 40 edições da prova; após 1974, duas equipas do distrito do Porto conquistaram 24 das 44 edições do campeonato já concluídas.

3. Ao nível dos vencedores da Taça de Portugal também há mudanças importantes: os clubes de Lisboa e Setúbal conquistaram 76% das edições antes do 25 de abril; após 74, esse número baixou para 48%; o peso das conquistas de clubes do Porto e de Braga subiu de 15% para 48%.

4. Se verificarmos que equipas tiveram melhores desempenhos em cada edição da liga descontando os três grandes, também baixa drasticamente o sucesso de equipas de Lisboa e Setúbal: 85% até 1974, 5% desde então. Os clubes do Porto e de Braga subiram de 10% para 90%.

5. Os números do sucesso internacional, que não pode ser desligado da valia interna, são os mais esmagadores: os clubes de Lisboa venceram três títulos europeus antes de 74 e nenhum após o 25 de abril; o FC Porto conquistou os sete troféus internacionais que detém em democracia.

Organizei as hipóteses que podem explicar estes factos em torno de três aspetos: 1) a capitalidade e o centralismo dos poderes; 2) a geografia económica do país; 3) fatores conjunturais específicos de cada clube.

1. Portugal é ainda hoje um país profundamente centralizado, mas era-o muito mais antes do 25 de abril. A presença na capital ou a proximidade de Lisboa são, em geral, fatores que facilitam a vida das populações e das instituições. O futebol não foge à regra.

Antes do 25 de abril, a organização das competições, a arbitragem e a justiça desportiva estiveram sempre concentradas em Lisboa, com a esmagadora maioria dos responsáveis por estas áreas a ser recrutado entre adeptos do Belenenses, do Benfica e do Sporting.

Já em democracia, a arquitetura institucional do futebol português evoluiu numa direção em que cresceu o poder das associações distritais (na FPF) e dos clubes, que chegaram ao ponto de constituir a Liga e de serem eles próprios a organizar competições profissionais.

Está por apurar, forma irrefutável, de que benefícios concretos usufruíram os clubes de Lisboa durante o Estado Novo, mas há pistas para seguir. O já denunciado favorecimento aos jogadores de clubes lisboetas no recrutamento (ou não) para a guerra colonial dos mais importantes.

2. A economia portuguesa transformou-se profundamente após o 25 abril. Nos anos anteriores a 1974, houve um forte crescimento económico, alicerçado sobretudo em monopólios de sete grandes grupos industriais e financeiros com sede e/ou forte implantação na região de Lisboa.

Os mais importantes eram o grupo CUF, o grupo Champalimaud e o grupo Espírito Santo. Após o 25 de abril, foram globalmente desfeitos e grande parte das empresas que detinham foram nacionalizadas. Estas mudanças fizeram-se sentir, particularmente, na península de Setúbal.

Em termos económicos, a evolução do país nos últimos 45 anos coincidiu com a afirmação do Norte, a região que congrega um maior número de pessoas, enquanto principal espaço industrial, produtor e exportador do país.

O que aconteceu ao nível do futebol terá sido um ajustamento da geografia desportiva em função da geografia económica. Por um lado, ganharam força clubes da região economicamente mais dinâmica: sobretudo Boavista, Vitória SC e Braga, mas também Rio Ave, Paços, Chaves, etc.

Por outro lado, perderam força os clubes de Lisboa que não terão resistido ao efeito de eucalipto do Benfica e do Sporting (Belenenses, Atlético, Oriental) e os da península de Setúbal mais afetados pela queda dos grandes grupos industriais (CUF, Barreirense).

3. Por fim, cada história é uma história, e a evolução de cada clube não pode ser dissociada de fatores muito específicos de cada um que nem sempre se relacionam diretamente com a revolução, mas que acabam por ter mais condições para vingar graças às conquistas de abril.

O caso do FC Porto é paradigmático. O sucesso do clube em democracia deveu-se muito à ação de figuras como Pedroto e Pinto da Costa, que não nascem com a revolução. Pedroto já era um treinador de sucesso desde os anos 60, enquanto Pinto da Costa ia crescendo como dirigente.

Mas é indiscutível que o crescimento do FC Porto, de Pedroto e de Pinto da Costa a partir dos anos 70, para além de alicerçado em grande competência desportiva, decorreu da capacidade de produção de um discurso que colocava em causa os poderes concentrados em Lisboa.

Essa dimensão ideológica que Pedroto e Pinto da Costa imprimiram ao FC Porto nunca poderia ter ocorrido antes do 25 de abril.

Apresentei dados e factos objetivos e hipóteses que julgo que podem explicá-los, e que podem estar certas, erradas, incompletas ou ser insuficientes. Uma coisa é certa: os clubes do Norte, em geral, e o FC Porto, em particular, são os campeões do futebol jogado em democracia.