Escolhi algo que pudesse durar uma vida inteira. Vidro e pulseira inarranhável, maquinário suíço, marca boa. Paguei em euro e, no dia seguinte, o relógio já era meu xodó.
Foi uma sinergia completa, eu e a máquina. Viramos um só.
Quando aconteceu de sair de casa sem ele, sem exageros, me sentia completamente pelado.
Não raras vezes, voltei para buscá-lo depois de já estar na repartição.
Certo dia, eu estava me arrumando para ia trabalhar quando chegou o rapaz da Tv à cabo.
Era um serviço simples, coisa rápida, mas não pude acompanhar. Pedi à diarista que ficasse com ele...
...ele, o rapaz da Tv à cabo.
Pelo esteriótipo dos cadernos de polícia, não seria estranho se ele tivesse uma tornozeleira eletrônica por baixo da calça.
Final do dia, quando volto para casa, cadê?
- Não deixou na repartição? Não.
- Não guardou em outro local? Não.
- Não escondeu? Não.
- Não perdeu? Não.
A diarista era (ainda é) de total confiança, então surgiu o monstro da dúvida...
- E o rapaz do Cabo...?
Procuramos por tudo. Reviramos a casa. Refiz todos os caminhos. Perguntamos.
Nada... só restava uma alternativa.
Sem dúvida, o rapaz da Tv havia furtado meu relógio.
Tinha que denunciar, ir até a polícia e ligar na empresa... PRENDE ELE.
Fiz o que achei certo:
Não lembrava o momento certo do desaparecimento, para casar exatamente com o serviço do garoto.
Denunciar por ser “suspeito”, por ser negro e cheio de tatuagens, por certamente ter uma tornozeleira escondida...?
Fuen.
Se ele tinha roubado, que fizesse bom proveito ou vendesse bem... MAS... e se não foi ele?
Demissão, delegacia, BO, denúncia, julgamento, prisão. Antecendente perdidos, impossibilidade de encontrar outro emprego, vergonha, vergonha...
Meses depois, perambulando pelo shopping com a Liv, vi um relógio idêntico na vitrine de uma joalheria. Ela sabia o quanto fiquei triste com o desaparecimento e me deu corda: vai lá, compra.
Entrei, mas quase morro com o preço... desisti.
Na dúvida, não ia desgraçar a vida de ninguém - e nenhuma tristeza me demoveria disso.
Agora, pula para 2015.
Livia teimou mudar o sofá de lugar.
Botamos o bicho no braço e carregamos pela casa. Ao virar o sofá, um barulho dentro do forro.
Algo pesado, maciço. Prateado.
Ao abrir o forro, o relógio.
Por qualquer razão deixei o relógio no braço do sofá e, sei lá, ele caiu no meio das almofadas e foi sumindo, sumindo, até aquele momento.
O relógio estava de volta e, no meio dos festejos, eu e Liv paramos, nos olhamos e suspiramos aliviados...
Hoje, seria mais um negro escravizado num presídio brasileiro, sem chance de paz.
Porque fui o lado que podia ter acusado, e não fez - e por isso não desgracei uma vida por conta de esteriótipos e preconceito.
E vi, recentemente, o que poderia ter sido a vida do menino do Cabo aqui no @coimbrasousa:
Aqui ele reflete sobre o que teria acontecido com ele, com a vida dele, se uma acusação igual à minha tivesse ido em frente.
A reflexão é outra.
Num país marcado pelo preconceito, pelo extermínio da população negra, tudo toma proporções gigantescas!
A mesma justiça que não pune o filho atropelador do Eike - e nem os diversos atropeladores com carros importados.
E que nenhum bem material, diante da justa dúvida, deve significar o fim de um homem.
Fim.