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O ano era 2010.

Eu estava de férias e, entre um passeio e outro, tinha uma missão: comprar um relógio bacana para mim.

Pela profissão, e pelas roupas que ela me obriga, queria um relógio que seguisse a liturgia da advocacia.

Assim sendo, comprei o dito relógio.
Foi um presente para mim.

Escolhi algo que pudesse durar uma vida inteira. Vidro e pulseira inarranhável, maquinário suíço, marca boa. Paguei em euro e, no dia seguinte, o relógio já era meu xodó.

Foi uma sinergia completa, eu e a máquina. Viramos um só.
E vivemos muitas aventuras juntos. Viagens, perrengues, audiências nos interiores mais escondidos do Pará.

Quando aconteceu de sair de casa sem ele, sem exageros, me sentia completamente pelado.

Não raras vezes, voltei para buscá-lo depois de já estar na repartição.
Pois bem... tudo belo, até que... pula para 2014:

Certo dia, eu estava me arrumando para ia trabalhar quando chegou o rapaz da Tv à cabo.

Era um serviço simples, coisa rápida, mas não pude acompanhar. Pedi à diarista que ficasse com ele...

...ele, o rapaz da Tv à cabo.
Negro, pequeno, cara fechada. Tatuagens visíveis. Educado, porém calado. Visivelmente pobre. E negro - já disse isso, mas vou repetir.

Pelo esteriótipo dos cadernos de polícia, não seria estranho se ele tivesse uma tornozeleira eletrônica por baixo da calça.
Ele ficou fazendo o serviço, a diarista ficou acompanhado e eu fui ao trabalho, já atrasado, e no meio do caminho percebi que estava sem o relógio e não havia tempo de voltar em casa para buscar, então fui assim mesmo, me sentindo nu.

Final do dia, quando volto para casa, cadê?
O relógio tinha sumido...

- Não deixou na repartição? Não.
- Não guardou em outro local? Não.
- Não escondeu? Não.
- Não perdeu? Não.

A diarista era (ainda é) de total confiança, então surgiu o monstro da dúvida...

- E o rapaz do Cabo...?
Bem, guardo minhas coisas - carteira, caneta, crachá e relógio - sempre no mesmo local, na sala. Justo onde o rapaz do cabo trabalhou.

Procuramos por tudo. Reviramos a casa. Refiz todos os caminhos. Perguntamos.

Nada... só restava uma alternativa.
- Certeza de que foi o rapaz da Tv - disse alguém - esse povo é assim mesmo, a oportunidade faz o ladrão, e ele era suspeito.

Sem dúvida, o rapaz da Tv havia furtado meu relógio.

Tinha que denunciar, ir até a polícia e ligar na empresa... PRENDE ELE.

Fiz o que achei certo:
NÃO denunciei.
Cara... na minha cabeça ainda restava mais dúvida do que certeza.

Não lembrava o momento certo do desaparecimento, para casar exatamente com o serviço do garoto.

Denunciar por ser “suspeito”, por ser negro e cheio de tatuagens, por certamente ter uma tornozeleira escondida...?
Me chamar de besta, de otário; bandido bom é bandido morto, e se não concorda liga na firma do cabo e adota ele. Bem feito, para deixar de ser idiota, perdeu o relógio.

Fuen.

Se ele tinha roubado, que fizesse bom proveito ou vendesse bem... MAS... e se não foi ele?
Só conseguia pensar na merda que seria uma acusação de furto dessas. A palavra do advogado contra a do menino do cabo.

Demissão, delegacia, BO, denúncia, julgamento, prisão. Antecendente perdidos, impossibilidade de encontrar outro emprego, vergonha, vergonha...
Deixei para lá.

Meses depois, perambulando pelo shopping com a Liv, vi um relógio idêntico na vitrine de uma joalheria. Ela sabia o quanto fiquei triste com o desaparecimento e me deu corda: vai lá, compra.

Entrei, mas quase morro com o preço... desisti.
E segui pensando: se aquele garoto levou meu relógio, que tenha vendido bem e que tenha feito bom uso da grana...

Na dúvida, não ia desgraçar a vida de ninguém - e nenhuma tristeza me demoveria disso.

Agora, pula para 2015.
Íamos dar uma festinha aqui em casa.

Livia teimou mudar o sofá de lugar.

Botamos o bicho no braço e carregamos pela casa. Ao virar o sofá, um barulho dentro do forro.

Algo pesado, maciço. Prateado.

Ao abrir o forro, o relógio.
PORRA!

Por qualquer razão deixei o relógio no braço do sofá e, sei lá, ele caiu no meio das almofadas e foi sumindo, sumindo, até aquele momento.

O relógio estava de volta e, no meio dos festejos, eu e Liv paramos, nos olhamos e suspiramos aliviados...
Jamais conseguiria me perdoar se tivesse feito aquela denúncia. Talvez a melhor decisão que tomei na vida foi ter dado o benefício da dúvida naquele momento, para aquele garoto do cabo.

Hoje, seria mais um negro escravizado num presídio brasileiro, sem chance de paz.
E por que lembrei disso?

Porque fui o lado que podia ter acusado, e não fez - e por isso não desgracei uma vida por conta de esteriótipos e preconceito.

E vi, recentemente, o que poderia ter sido a vida do menino do Cabo aqui no @coimbrasousa:

@coimbrasousa, negro, periférico, brasileiro, estudando nos EUA, quase foi acusado de ter furtado uma miséria de lapiseira.

Aqui ele reflete sobre o que teria acontecido com ele, com a vida dele, se uma acusação igual à minha tivesse ido em frente.
Obviamente, não estou passando a mão na cabeça de ninguém, muito menos propondo que se deixe de lado direitos justos.

A reflexão é outra.

Num país marcado pelo preconceito, pelo extermínio da população negra, tudo toma proporções gigantescas!
O menino negro, acusado de furtar um relógio ou uma lapiseira, penaria eternamente entre os corredores da nossa justiça penal, e justiça cotidiana, marcado a ferro.

A mesma justiça que não pune o filho atropelador do Eike - e nem os diversos atropeladores com carros importados.
Não pretendo guiar ninguém- cada qual e seu guia - mas que sirva de reflexão, de que alguns atos são mais graves a depender da cor da pele.

E que nenhum bem material, diante da justa dúvida, deve significar o fim de um homem.

Fim.
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