Como a lógica de mercado pode dar resultados muito ruins e paradoxais na ciência ou na saúde quando eventos raros acontecem e a armadilha que isso pode ter nos colocado caso o coronavírus saia da China. Mais uma thread.
É muito fácil se desfazer de infraestrutura pela eficiência e isso faz muito sentido a maior parte do tempo. Até não fazer. Se eu mandar um projeto para financiamento hoje querendo criar um centro de síntese de DNA no Brasil, podem negar com muita razão pq é mais barato importar.
Então quase todo DNA que precisamos fazer para poder fazer experimentos é encomendado de fora do Brasil. Mais barato e mais eficiente. O mesmo vale para outros reagentes. O mesmo vale para muitas vacinas, melhor importar do que fazer aqui. E não criamos muita infra dessa aqui.
E isso é ótimo. Torna a ciência mais eficiente aqui porque gastamos com o que só nós podemos fazer e ajuda a fazer bom uso da grana cada vez menor que temos. Até o mundo todo precisar da mesma coisa ao mesmo tempo.
Agora, precisamos de DNA sintético. Como a China disponibilizou o genoma do NCoV bem rápido, podemos fazer testes aqui sem precisar do vírus. MAS, pra isso, precisamos entrar na fila pq o mundo todo quer fazer o mesmo. Atraso de semanas pra termos testes no BR por conta disso.
Mais pra frente, se tudo der certo e criarem uma vacina pro coronavírus, só a China vai precisar de algumas centenas de milhões de doses. Cada país do mundo vai querer a sua. Para quem a fábrica na Europa, mais eficiente, de onde encomendaríamos, vai vender?
Podemos entrar na fila? Claro. Mas empresa privada não faz estrutura ociosa. Fábricas são feitas pra demanda regular de maneira mais eficiente. E não pra um pico insano que acontece vez em nunca. É aqui que pagamos o preço de uma estratégia que fez sentido por décadas.
Por década economizamos comprando de fora. De onde é mais barato, mas eficiente, precisa de menos treino, etc. que já falei. Só que um cisne negro desses, um evento único, quebra com esse ritmo e demanda uma estrutura que de repente descobrimos que não temos.
Sem lab para sintetizar DNA, teste atrasa. Sem produção de reagentes, pode faltar teste mesmo com DNA. Sem produção de remédios, falta tratamento. Sem produção de máscaras e equipamento, falta proteção. Sem fábricas de vacinas, falta a melhor solução.
"Libera pra empresas privadas concorrerem e fazerem isso do dia pra noite." > Ótimo em muitos cenários. Não resolve aqui. Não é de uma hora pra outra que se cria isso, o mundo todo está competindo pelos mesmos recursos. E mesmo se fosse possível, sem regular, tem outro problema.
Uma empresa privada aqui, que pode vender as vacinas que produzir para quem quiser (justo), vai vender pra quem? Quem paga em euro ou em real? Se teve incentivo para abrir, quem colhe? E tem precedente para situações onde um país roda por conta de exportação em momento crucial.
No Late Victorian Holocausts, o Mike Davis atribui a parte da Grande Fome da Índia de 1876-78 à exportação. Com as linhas de trem, os comerciantes de grãos preferiram exportar o trigo para quem pagava melhor fora, enquanto o país passava fome. a.co/aErD4Fi
Outro problema é, o que essa empresa vai fazer depois que essa demanda pontual sumir? Qual o incentivo para fazer o maior número de doses o mais rápido possível? Pq não fazer uma fábrica menor, mais barata, que demora mais pra atender a demanda (e mais gente morre) mas lucra?
O período é diferente da Grande Fome, mas a lógica é a mesma. Sem uma infraestrutura redundante que desperdiça dinheiro por grande parte do tempo fazendo mal algo que mercados e empresas privadas fazem muito melhor, nesse tipo de problema um país pode ficar na mão.
Lógico que não faz sentido um país estar preparado para tudo. Mas um pouco de desperdício, um pouco de redundância e de pesquisa "a fundo perdido" – bem feita mas sem aplicação imediata – pode fazer muito bem nesses momentos raros. Não é necessário até ser.
Espero que não seja o caso. Mas como apontei com pesquisa que não é importante até ser importante, é nessas horas onde uma situação rara acontece que as fragilidades aparecem. E se não for o corona (tomara), outros vírus virão.
