Thread by @lucasmafaldo

Acredito que é possível que a trajetória do coronavírus seja diferente no Brasil por causa do clima. Mas, independente disso, certamente a resposta pública será diferente no BR e nos países ocidentais desenvolvidos. O Brasil tem características muito específicas.

O BR tem um estado relativamente fraco, com pouca capacidade de iniciativa. Além disso, apesar de ter um elemento tecnocrático forte em nossa história, a burocracia é mais reativa do que dirigente. Além disso, o país tem poucos recursos — humanos e financeiros.

Principalmente, o BR tem uma relação estranha com normas e racionalidade. O estado não tem o monopólio da força e há muitas regras que “não pegam”. Além disso, há muitas divergência cultural dentro do país. Há muitas comunidades que simplesmente não escutam o discurso oficial.

Mesmo que autoridades médicas tentem fazer isso ou aquilo, a maior parte da população irá ignorar e não haverá recursos para fazer nenhum plano muito complexo. O governo é forçado a apagar incêndio.

A vantagem da sociedade brasileira é que as redes informais são fortes.

Há famílias grandes e mesmo nas relações de amizade há muita cooperação. Isso cria uma rede de segurança informal que realmente funciona.

As sociedades propriamente “ocidentais” (leste europeu, Canadá e parcialmente os EUA) são totalmente diferente em cada um desses pontos.

No plano social, creio que há uma dose de atomização muito maior: as famílias são pequenas, os amigos são distantes. Há uma noção que cada indivíduo/casal deve ser totalmente auto-suficiente.

Justamente por isso, eles precisam de um estado funcional e impessoal — o que eles têm.

O estado desses países possui uma quantidade imensa de recursos à sua disposição. Mas esses estados também me parecem poder ser descritos como “pós-democráticos”. Eles possuem uma elite técnica que realmente possui capacidade dirigente. A dimensão política foi quase extinta...

... reduzida a um teatro cujo objetivo é reforçar a autoridades dos especialistas e promover “políticas baseadas em evidências”.

A resposta ao corona veio dessa elite tecnocrática — e a questão mais curiosa me parecer ser explicar porque essa elite parece ter falhado.

E a primeira questão talvez seja: será que essa elite falhou mesmo? Ou ela apenas está operando a partir de princípios que parecem estranhos a nós?

Eis o ponto onde acho que pode ser realmente considerado uma falha: eles subestimaram o problema e demoram a agir.

Há uma explicação simples para isso — e embora eu não seja talebiano no meu modo de pensar, acho que ele matou a charada. Essa elite tecnocrática tem muito QI e muito orçamento, mas o sistema de incentivos forja um tipo de personalidade problemática. É uma comunidade muito...

...protegida, sem “skin in the game”, que é recompensada por capacidade de imitar perfeitamente o consenso e não por tomar iniciativa. Por isso mesmo, esse tipo de comunidade tende a ser passiva e ideologicamente uniforme. Por isso, eles ignoraram os alertas de janeiro.

A ideia de risco parece muito abstrato para esse grupo. Eles não sentem o frio na barriga da adrenalina de quem coloca o seu na reta. Eles entenderam a progressão geométrica perfeitamente (ao contrário do hoi pólio), mas não conseguiram se importar com o assunto.

A primeira etapa da corona-crise foi composta dessas autoridades tentando proteger a própria posição, diminuindo a importância do problema e sendo mesmo condescendente com o grande público.

Porém, a segunda etapa foi ativada e agora vamos descobrir outra coisa: talvez as...

... definições de sucesso da tecnocracia não sejam as mesmas da gente. Diante de uma epidemia, o povão pensa: “as autoridades vão evitar que eu e as pessoas que eu amo morram”.

Mas não é bem assim que funciona. O objetivo da tecnocracia é fazer um cálculo de custo/benefício.

Nesse cálculo, a possibilidade de centenas de milhares de mortes precisa ser comparada com as perdas financeiras derivadas das medidas de contenção.

Tenho certeza que, em algum momento, alguém entregou um relatório dizendo: “se a gente fizer metade do que a China fez...

... o PIB cai x”. Além disso, o grupo tem um viés para a não-ação, como eu já falei. Medidas de contenção tem um custo claro e um retorno incerto. É arriscado demais para um grupo averso ao risco.

Foi aí que a ideia de “achatar a curva” começou. Embora seja sensata (tudo nesse..

... grupo é sensato), essa ideia é também uma concessão: é admitir que muita gente vai morrer e que o único objetivo é evitar danos colaterais por causa da falência do sistema de saúde.

Em uma doença com letalidade entre 0.5% a 2%, isso significa gente pra caramba.

Ao menos no Reino Unido, parece bem claro que essa é a política oficial. Porém, isso está implícito em todo país ocidental-progressista. A ideia é ir limitando o dano ao longo do tempo até que tanta gente tenha pego a doença que haja uma imunização natural.

Talvez esse plano funcione, mas acho que ele é utilitarista demais para a maioria da população. E é bem arriscado: acho que a possibilidade de danos não-lineares é enorme, além de me parecer derrotista.

Os EUA, aliás, me parecem o país menos “ocidental” nesse sentido. O país não tem uma burocracia tão forte e a elite política é realmente quem toma as decisões. Além disso, eles gostam de mensagens positivas e de princípios. Por isso mesmo, Trump vai falar em “vencer a doença”...

... e não apenas “achatar a curva”. Curiosamente, isso o coloca muito mais próximo dos governos de Taiwan e Coréia do Sul, que também estão tentando uma vitória.

Vamos precisar atualizar e ampliar nossas divisões ideológicas. O mundo está mudando.

A thread ficou longa, então não tive paciência para revisar (doeu um pouco o “hoi polloi” ali, mas é isso).

Mas, enfim, para dizer um argumento favorável ao plano da tecnocracia ocidental: talvez a extrema contenção asiática não seja sustentável. Talvez seja caro demais...

... manter o nível de isolamento que criaram agora. Mas eis o ponto: será que não valeria a pena tentar? Por que já ir desistindo agora?

Talvez uma pista esteja justamente em algo que passou desapercebido até agora: apenas comunidades locais, com fronteiras bem definidas..,

... conseguem conter uma epidemia. Mesmo os estados nacionais são grandes demais para responder isso — e nem se fala na lentidão de organismos multi-laterais. O localismo é a resposta mais clara para esse problema, mas a mentalidade ocidental é internacionalista e atomista.

Talvez isso explique também a semelhança entre os EUA e alguns países asiáticos. Nesses lugares, a ideia de comunidade com poder estatal está mais viva. Nos outros, o poder estatal páira acima da população, tentando controlar a “irracionalidade” do povo.

Obviamente, nada disso se aplica diretamente ao BR. Os latinos são outro tipo de civilização: muito mais pessoal, muito mais informal, mas com muito menos coesão social no nível nacional e, em geral, com estados menos funcionais.

Acho que esse thread merece um prêmio por juntar a maior quantidade de assuntos díspares. Pretendo ser o @MacaesBruno depois de começar a fazer deadlifts com o @nntaleb.