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Desde o fim de janeiro, estou escrevendo obsessivamente sobre o coronavírus. Apesar de rejeitar, cenários apocalípticos, insisti que o assunto era grave.

Em paralelo, a crise política já endêmica do Brasil se tornava cada vez mais séria.

Agora, as duas se encontraram.
Em primeiro lugar, precisamos compreender porque o coronavírus é sério. Existem duas atitudes opostas equivocadas: gente que entra em pânico achando que todo mundo vai morrer e gente que desmerece o tema achando que "é só uma gripezinha".

A verdade está no meio do caminho.
O coronavírus não é uma praga biológica que vai exterminar a humanidade. Mas, ainda assim, ele causar muito sofrimento. Ainda não sabemos QUANTO sofrimento ele vai causar, mas já sabemos que não vai ser leve.
O problema da doença é a combinação entre três fatores: facilidade de contágio, gravidade (quantos precisam de cuidados médicos), letalidade (quantos morrem).

Se você olhar só para a letalidade, a doença parece leve. Mas é preciso considerar TODOS esses fatores em conjunto.
Existem doenças com letalidade bem maior (tipo ebola), mas que são menos contagiosas. Logo, o número total de mortos acaba sendo baixo.

O coronavírus tem uma dinâmica totalmente diferente: um percentual pequeno de pessoas vai morrer, mas MUITOS vão pegar. Quando você...
... multiplica o número baixo de letalidade por uma parcela enorme da população, o número de mortos começa a ficar bem mais alto.

Além disso, tem outro problema: a gravidade da doença. Mesmo quem não morre acaba precisando de cuidados médicos, o que pode gerar um NOVO...
... PROBLEMA, que é o esgotamento do sistema de saúde. Existem relatos que entre 10 a 20% de infectados precisam ser internados. Se isso for espaçado ao longo de vários meses, pode ficar tudo bem. Porém, se ocorrer tudo de uma vez, pode causar uma sobrecarga no sistema.
O sistema de saúde não pode ser ampliado instantaneamente. Leva tempo até fabricar mais produtos, contratar mais gente, criar mais leitos, etc.

Se o sistema ficar sobrecarregado, mesmo pessoas sofrendo de OUTRAS doenças vão morrer por não ter acesso ao sistema.
Além disso, essa doença gera um segundo nível de problemas. Se a sociedade ficar parada muito tempo, haverá uma crise de abastecimento. Nós dependemos um dos outros. Precisamos de supermercados, transportadores, fábricas, etc.
Por isso mesmo, embora a LETALIDADE seja baixa (ou seja: você muito provavelmente NÃO vai morrer disso), o IMPACTO SOCIAL da doença é altíssima.

Porém, a verdade é que quase todos os países não reagiram à altura do problema, por uma série de barreiras culturais e políticas.
Não vou repetir todos aqui, pois me parece óbvio que isso é um assunto que preencherá inúmeras teses nos próximos anos.

Mas o principal, em se tratando do caso do Brasil, é que temos uma péssima combinação de fatores: (i) somos um país pobre; (ii) nossa burocracia é muito...
... engessada; (iii) nossos políticos estão plenamente absorvidos por uma guerra civil interna; (iv) o povo brasileiro não leva infecções à sério; (v) não acreditamos muito no discurso oficial; (vi) somos muito extrovertidos e táteis -- seria muito difícil evitar multidões;
(vii) temos pouca coesão social -- a ideia de fazer sacrifícios em nome da coletividade parece estranha, o cancelamento das aulas provavelmente significa que o número de festas (e pegação) aumentaria ainda mais.

Ou seja, desde o início, nossa sociedade não estava decidida a...
... enfrentar o vírus. E aí entrou a dimensão política.

Essa é mais complicada de discutir, porque se tornou um campo minado, todo mundo com perspectivas irreconciliáveis.

Eu tenho tentado interpretar esse fenômeno, indo além do partidarismo, em meus artigos para o @JornalBSM.
O resumo do meu argumento é o seguinte: o conflito entre executivo e legislativo é devido a um problema institucional brasileiro. O congresso é muito distante da população, porque o voto tem pouco poder de sanção sobre os deputados. A população sente mais confiança no executivo..
... porque vota diretamente dele.

Creio que é por causa disso que os brasileiros desenvolveram quase um gosto excessivo por manifestações de rua. Essas manifestações são um raro momento onde os brasileiros sentem que são os AUTORES da sua história.
Vejam, por exemplo, o sucesso de coisas como a lei da ficha-limpa. Isso significa que as pessoas admitem que as eleições não são suficiente para expulsar deputados corruptos -- é preciso um outro mecanismo para fazer isso.

Essa desilusão eleitoral se transformou em...
... um movimento que pode ser chamado de "populista" legitimamente, sem a acepção de xingamento: a empolgação com Bolsonaro. O @opropriolavo foi quem melhor descreveu isso, ao dizer que Bolsonaro era mais um símbolo do que o líder das massas conservadoras.
Bolsonaro nunca teve uma estrutura política por trás dele. Ele subiu ao poder simplesmente porque uma parcela imensa da população se viu representada por ele e confia mais nele do que nas demais instituições.

Nesse sentido, eu acho injusto quando acusam Bolsonaro de atacar...
... as instituições. Na verdade, ele é até muito mais legalista do que a média histórica da América Latina. Embora ele seja duro no plano verbal, ele nunca usou a presidência contra as outras instituições.

Porém, enquanto símbolo, ele não tem controle perfeito das massas. No...
... meio dessa semana, eu avisei que mesmo Bolsonaro não poderia parar as manifestações. O povo já estava pilhado demais para ir para as ruas.

O máximo de estrutura que o bolsonarismo possui são "influenciadores digitais" descentralizados, em frequente desacordo uns com...
... os outros, com um histórico relativamente curto de participação na opinião pública. Esses influenciadores talvez conseguissem desacelerar a energias das manifestações, mas duvido que pudessem pará-las. Eles não são exatamente capitães de um movimento, mas algo mais...
... próximo de um centro de reverberação. Alguns ficaram preocupados com o coronavírus, outros não.

Nesse contexto, eu pensei o seguinte: a melhor coisa que Bolsonaro poderia fazer, seria se distanciar desse movimento e tirar um pouco da energia.
Esse distanciamento faria sentido mesmo que puramente por causa da saúde pública. Porém, tem um motivo adicional óbvio: o establishment brasileiro está doido para derrubar Bolsonaro. Eles não vão esperar 2022. Eles vão usar a primeira oportunidade para iniciar o impeachment.
(Cheguei no limite de espaço -- vou publicar e volto a adicionar mais em dois minutos).
Continuando: na sexta-feira, Bolsonaro fez exatamente isso: se distanciou das manifestações. Embora ele tenha dito que respeitava o direito do povo se manifestar, ele não se considerava líder do movimento (o que é verdade, mas é também algo que ele PRECISAVA dizer...
... para evitar ser responsabilizado por uma crise institucional), mas pedia que o povo adiasse às manifestações.

A resposta foi forte e imediata: o povo lançou o "desculpa, Jair" e disse que ia em peso às ruas. E fui.
Bom, foi aí Bolsonaro reverteu a direção: em vez de continuar se distanciando da população, ele resolveu abraçar o movimento de vez -- fotos, retuítes, tudo no mundo.

Os motivos que o levaram à fazer isso certamente serão também tópicos de discussão nos livros de história.
Eu obviamente não sei o que se passou na sua mente, nem na mente dos líderes da direita. Mas eu especulo que foi uma combinação dos seguintes fatores.

1. A militância achou que não adiantava começar medidas de contenção agora -- ou por não acreditar na seriedade do vírus ou...
... por achar que estava cedo demais para convencer a população a seguir essas medidas. Muita gente me disse que todo mundo ia continuar indo para restaurantes, festas, etc. Logo, se a vida ia continuar normalmente, eles não queriam abrir mão do ato político já montado.
2. Muitos líderes devem ter calculado que a ameaça do impeachment viria de todo jeito: as manifestações eram irreversíveis e elas seriam utilizadas de todo modo contra o presidente. Nesse cenário, devem ter calculado que recuar seria mostrar fraqueza antes do ataque inevitável.
A decisão, portanto, foi ir para o "all-in", como conversei mais cedo aqui no twitter com várias pessoas: apostar tudo em uma carta de alto risco. A avaliação foi que era melhor abraçar o movimento para assustar o establishment com a força da direita popular.
As próximas semanas dirão se essa aposta valeu a pena. Nós simplesmente não sabemos como o coronavírus vai se comportar em uma clima mais tropical. Talvez seja uma marolinha, talvez seja uma paralização geral, no nível da Itália.

Em qualquer cenário, semana que vem...
... o estado brasileiro vai precisar conter uma epidemia enquanto a oposição vai começar a articular o melhor modo de usar a crise para derrubar o governo.

Prever o resultado desse confronto é mais difícil do que prever a trajetória do corona.
Talvez a força do povo nas ruas sirva para dar uma acalmada em um processo de impeachment, mas ainda assim o Brasil continuaria com um equilíbrio institucional extremamente instável.

Continuo insistindo que é preciso uma reforma política para dar uma arejada no congresso.
Minha prescrição é a mesma há anos: voto distrital, candidaturas sem partido e algum mecanismo para antecipar eleições (recall ou voto de não-confiança geral).

O Brasil está enfrentando uma epidemia, uma possível crise financeira global, enquanto possui uma falha enorme...
... no próprio sistema institucional. Não adianta culpar um ou outro pelas próximas semanas. É apenas com um ato de responsabilidade coletiva e reformas sérias que é possível colocar as coisas no trilho.
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