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O mundo todo está sendo atropelado pelo coronavírus. O Brasil já era grupo de risco: uma longa história de estado disfuncional, sociedade sem coesão e no meio de uma crise política.

Vou tentar resumir minha leitura do tamanho do problema.
Acho que não preciso repetir porque o coronavírus é sério. A ficha já caiu: é altamente contagioso, muita gente precisa de internação, e taxa de letalidade é relativamente alta (quando comparada com outras doenças igualmente contagiosas).
Eu expliquei isso aqui: brasilsemmedo.com/desafio-covid-…
Como insisto desde o janeiro, o problema do coronavírus não é apenas VOCÊ ficar doente. Por mais saudável que você chega, o dano social vai te pegar: centenas de milhares de pessoas doente ao mesmo tempo param a economia e afogam o sistema de saúde.
E aí a gente duas questões, parecidas, mas separadas: Por que o mundo não levou o COVID-19 à sério? E por que o Brasil também errou?

A primeira questão CERTAMENTE vai gerar milhares de teses ao longo dos próximos anos.
A minha versão ultra-resumida da coisa é o seguinte: os países ocidentais confiaram demais em uma burocracia pouco apta à lidar com risco e incerteza. O principal instrumento da "política baseada em evidência" é o cálculo de custo/benefício. Isso funciona muito quase sempre...
... mas tende a não captar bens riscos novos, não-lineares e heterogêneos. A burocracia demorou a tocar o alarme.

Por sua vez, a classe política não queria reagir na direção óbvia: restringir o movimento interno e externo. Há motivos ideológicos e pragmáticos para isso.
O motivo pragmático é evitar uma crise nos mercados (especialmente forte por causa do nível atual de alavancagem).

O motivo ideológico é que fechar fronteiras não cabe no consenso atual -- nem a direita nem a esquerda dos países desenvolvidos aceitam o fechamento de fronteiras.
Fechar fronteiras é contrário tanto ao princípio de "open borders" (a ideia que estamos todos conectados sob uma humanidade comum) quanto ao princípio liberal de que o livre movimento de pessoas é parte da auto-regulação do estado.
Ou seja, de um lado, a burocracia não estava suficientemente alarmada. De outro, a solução óbvia era politicamente indigesta.

E tem também um motivo universal: as pessoas têm dificuldade de entender progressão geométrica. O povo não viu que 2 mil ia virar 200 mil rapidinho.
Esses foram o motivo da paralização do ocidente em geral. O Brasil é uma parte dessa história.

O Brasil é, no fundo, um país semi-ocidental. A gente não tem debate próprio. Cada grupo-br acompanha um pedaço do debate estrangeiro.
Por isso, enquanto o ocidente vacilava na resposta, os brasileiros vacilavam também, dependendo de qual grupo exterior os influenciavam. Isso já criava um atraso de alguns dias para a coisa pegar no Brasil.

Além disso, têm as características gerais do Brasil. Como já falei...
... muito, a gente não acredita de verdade em gripe. A gente pensa que é frescura, desculpa para não ir ao trabalho, coisa de gente fraca, etc.

Parte disso é que o clima nos salvou de epidemias mais grave. A outra parte é só falta de noção mesmo.

Mas é parte da equação.
Bom, isso aí foi o cenário até começo de fevereiro.

Aí entra o embate entre bolsonaristas e anti-bolsonaristas.

Segue minha leitura desse episódio.
Esse capítulo é mais complicado de resumir, porque as pessoas estão putas demais em relação a esse assunto e eu parto de premissas menos óbvias.

Peço, então, que tentem ter um pouco de paciência: partes do que segue parecerá estranho, mas posso justificar melhor depois.
A grande maioria dos anti-bolsonarista não quer esperar 2022. O plano é derrubá-lo o quanto antes.

Existem vários motivos para isso, mas o principal é o seguinte: o Brasil é um país com um parlamento particularmente poderoso. Esse é outro assunto que eu também expliquei em...
... artigos para o @JornalBSM. O povo não consegue punir os deputados por meio do voto. O presidente tem muita visibilidade. Logo, o congresso sempre joga dura, pois pode desestabilizar o presidente ou mesmo impichá-lo.

Aqui a versão mais longa: brasilsemmedo.com/o-parlamento-i…
Isso é verdade para todo presidente. Porém, Bolsonaro tem fragilidades adicionais: ele não tem partido por trás dele, não tem militância organizada, não tem uma equipe. Ele é, como o @opropriolavo primeiro descreveu, mais um símbolo do que exatamente um líder. Muita gente...
.. ama ele, mas ele não possui uma estrutura de poder.

Por isso mesmo, como @silviogrimaldo também explicou em algumas entrevistas, os militares se tornaram uma parte importante do governo. Não é militarismo: é falta de quadros partidários.
Por isso, Bolsonaro fica especialmente vulnerável diante do congresso (e por isso era um delírio paranóico a ideia que ele implementaria uma ditadura). Além dele ser pessoalmente muito legalista e formalista (como boa parte da sociedade brasileira), mesmo se ele não fosse...
... ele não teria os meios de tomar o poder.

Mas a oposição tem. E eles têm explorados diferentes modos de derrubá-lo desde o início.

Os manifestações de domingo foram tão delicadas: a oposição tinha enquadrado as manifestações como uma ataque às instituições para tentar...
... justificar o pedido de impeachment. Por isso, Bolsonaro precisava se distanciar das manifestações e, ao mesmo tempo, que elas fossem fortes o suficiente para assustar o congresso e o resto do establishment.

E aí veio o coronavírus no meio disso tudo.
O coronavírus criou um risco adicional para as manifestações: tanto podia esvaziá-las como podia aumentar as críticas a Bolsonaro. O presidente fez o vídeo pedindo calma, mas aí saiu o "desculpa Jair, mas eu vou" e, no domingo, ele abraçou as manifestações de vez.
Os bolsonaristas devem ter calculado que o risco de desidratar as manifestações eram maiores do que os do vírus. Creio que pesou aí o ceticismo brasileiro quantos aos vírus em geral, como ao fato de que boa parte dessa turma consume principalmente a mídia americana que...
... ainda estava cética em relação ao vídeo, se preocupando mais em fazer a leitura política do momento em vez de entender a substância por trás da coisa.

(Acabou o espaço. Continuo já, para chegar ao presente).
[Corrigindo lá atrás: o livre-movimento de pessoas é parte da auto-regulação do mercado, obviamente, não do estado. Creio que os outros erros não atrapalham a compreensão.]
Bom, continuando, os bolsonaristas estavam pensando muito em política e não tinham percebido o peso do evento "cisne negro" que estava se aproximando e foram adiante com a manifestação.

Foi uma mistura de sucesso e fracasso igualmente estrondoso: provou que ele é o político...
... mais popular da atualidade de longe, mas também acelerou o processo de tentativa de derrubá-lo. A oposição passou os últimos dias se movimentando com agilidade.

O governo, por sua vez, começou a responder: aceitou a responsabilidade pelo problema e começou a agir.
Chegamos, agora, ao presente. Em vez de apresentar minhas leitura do que aconteceu, vou dizer o que acho que PODE acontecer.

Em primeiro lugar, acho o caso pelo impeachment fraquíssimo. Não vejo base legal alguma (apesar da Janaína Paschoal ter se juntado oficialmente à ....
.. oposição), assim como não vejo base política. Não acredito que a dinâmica de forças mudou significativamente. Talvez Bolsonaro tenha perdido um pouco da sua base, mas ele ainda é imensamente mais popular do que qualquer outro político brasileiro. E sua popularidade não...
... é apenas alta, mas é intensa. Seus seguidores certamente irão para a rua em massa para defendê-lo de um impeachment.

Além disso, a oposição é um balaio de gatos malucos, sem qualquer unidade ideológica ou lealdade pessoal. Não vejo possibilidade desse pessoa se unir em...
... torno de um Maia ou Mourão.

Para terminar, tentar derrubar o governo no meio de uma epidemia lançaria o país em uma espiral de caos tão grande que eu imagino que mesmo parte dos anti-bolsonaristas vão preferir esperar 2022.
Portanto, eu acho que as energias do país agora vão se mover para a solução da epidemia e suas consequências.

Uma parte significativa continuará sendo desperdiçada na briga política, mas eu espero que seja pequena. O Brasil precisará de toda a energia possível.
No médio-prazo, no entanto, o rumo dos acontecimentos dependerá muito mais do resto do mundo do que do próprio Brasil.

Existem três fatores agora pelos quais devemos rezar: (i) que o vírus seja fraco nos trópicos; (ii) que a hipótese da herd immunity seja verdadeira; (iii) e...
... que sai logo vacinas e tratamentos.

O papel da sociedade brasileira será limitado nessa história. O objetivo agora é todo mundo tentar manter a cabeça acima da água e aguentar o impacto.
É importante cobrar de todos os níveis de governo, no momento, mas também da sociedade civil. O governo brasileiro simplesmente não tem recurso para responder a esse desafio. Vai ter que ser uma resposta coletiva e multilateral.
É importante também entender que, apesar de ser necessário cobrar, se o bicho pegar mesmo, não teria nenhum governante capaz de realmente evitar isso. É um problema global: epidemia somada com recessão (e talvez depressão) mundial.

Creio que o risco maior agora é confundir...
... o que foi um evento externo com a disputa política e permitir que a politização crescente continue paralizando a sociedade.
(Inclusive, também escrevi bastante no Brasil Sem Medo sobre os riscos da politização em geral. Leiam aqui, enquanto está aberto para não-assinantes: brasilsemmedo.com/author/mafaldo/)
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Quando passar o sufoco desses dias, enviarei novas edições: lucasmafaldo.org
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