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1. O revisionismo histórico promovido pelo Benfica tem uma ideia-chave sobre o Estado Novo que é repetida até à exaustão: enquanto o Benfica teve vários dirigentes que pertenciam à oposição ao regime, o FC Porto e o Sporting eram liderados por fascistas. A ideia é falsa.
2. E é falsa porque esta ideia pega em apenas uma parte da história do Benfica (a parte que interessa ao Benfica) e outra parte da história do FC Porto (a parte que interessa ao Benfica) para construir uma visão daquele tempo que não corresponde à realidade do que se passou.
3. Esse exercício foi feito, por exemplo, por @padaoesilva, no Record, em maio de 2017: “Enquanto tivemos vários presidentes de meios oposicionistas [...], os nossos rivais eram presididos por figuras do regime fascista [...]”.
4. O argumento de @padaoesilva, em parte desculpável pelo facto de ter seguido uma cartilha, é intelectualmente desonesto pela evidente truncagem da realidade histórica: ignora os fascistas que integraram a estrutura do Benfica e os oposicionistas da estrutura do FC Porto.
5. Apresento apenas alguns exemplos. Augusto Cancela de Abreu, ministro das Obras Públicas que teve uma intervenção decisiva na viabilização da construção do Estádio da Luz, foi presidente da Assembleia-Geral do Benfica enquanto integrava um governo de Salazar.
6. Mário Gusmão Madeira, presidente do Benfica entre 1949 e 1952, foi deputado na Assembleia Nacional e governador civil de Lisboa entre 1947 e 1959. Ou seja, foi simultaneamente governador civil e presidente do Benfica.
7. É verdade, como dizem os cartilheiros, que o FC Porto também teve presidentes que eram figuras do regime, casos de Urgel Horta e Ângelo César. O que eles não dizem é que César até foi irradiado do futebol por se insurgir contra as arbitragens que beneficiavam os clubes do Sul.
8. Também não dizem que o Estádio das Antas foi visitado pela PIDE, que ameaçou o presidente Cesário Bonito (também irradiado, decisão mais tarde anulada), por se ter insurgido contra o adiamento de um jogo com o Sporting, devido à retenção de Travassos no aeroporto de Madrid.
9. Também não dizem que Afonso Pinto de Magalhães, presidente do FC Porto entre 1967 e 1972, era um conhecido oposicionista, tendo apoiado a candidatura presidencial de Humberto Delgado em 1958 e tendo sido mesmo preso pela PIDE.
10. E também não dizem, claro, que outro notável oposicionista, Cândido de Oliveira, foi contratado como treinador do FC Porto na década de 1950 – curiosamente, durante a presidência de Urgel Horta, deputado na Assembleia Nacional.
11. A história das relações dos clubes grandes com o Estado Novo é demasiado complexa para se cingir à análise dos vínculos entre os seus dirigentes e o regime. O que não tem complexidade é perceber o que o Benfica faz: corta o que dá jeito e monta uma nova realidade.
12. O que não pode deixar de espantar-nos é que este exercício tipicamente pidesco, disseminado através de cartilhas homogeneizadoras do pensamento e do discurso, seja praticado por quem desempenha papéis sociais que se baseiam na produção e transmissão de conhecimento.
