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Larguei a mamadeira antes de 1 ano. Aos 3 caí da janela do segundo andar. Aos 7 mudei p/ a Amazônia. Aprendi a nadar em rio. Sobrevivi a 12 malárias, 1 miningite e a 2 acidentes de carro. Sei caçar, pescar e vivi sem luz elétrica e água encanada.
Tô pronta para a revolução.
Sobre ser criança na Amazonia na década de 70:
- eu e meus irmãos entravamos uns 3 KM mata adentro, numa picada, p/ chegar a um antigo seringal e tomar banho numa bica. Iamos escondidos. A entrada da mata ficava a uns 50 metros de minha casa.
Meu medo era de tamanduá, q diziam
q apertava num abraço até te matar. Víamos muitos e mais um monte de bicho. Onça, só escutávamos o esturro. Apanhávamos toda vez q minha mãe descobria a ida à bica. Só deixamos de ir qdo um amigo foi acuado por uma onça e foi salvo por seu cachorro, q acabou morto por ela.
No dia do acuo da onça, não fomos pq tínhamos apanhado no dia anterior. Era preciso deixar minha mãe se acalmar e esquecer. Ficamos com medo depois disso.
Quando chovia (e lá chove 6 meses sem parar), apareciam jacarés nas poças de lama; corríamos para pegar um pequeno e botar cordinha nos pescoço. Pouco êxito, eram valentes. Eu mesma nunca consegui.
Minha casa limitava uns 50 metros da mata fechada, aparecia de tudo.
Volta e meia entrava na rua um bando de catetos (porco espinho). Esses eu tinha medo. Tinham presas grandes e eram agressivos. Andavam em muitos, destruiam tudo. Como faziam barulho, dava tempo de correr e entrar em casa.
Pacas, cutias, capivaras e veados não davam medo.
Durante umas semanas, no fim de 77, minha diversão era ir com uma amiga ao posto médico da Sucam, onde faziam exames de malária e davam o remédio . Todo dia a fila era maior q o dia anterior. Tentava falar com todo mundo, perguntar de onde tinha vindo (invariavelmente do sul)
E no dia seguinte eu ia lá falar com a pessoa na hora q pegava p resultado da malária. Era gente nova todo dia. Um filme de faroeste; como eu me lembrava q eram os filmes de faroeste, do tempo q via tv.
Depois cansei daquilo, não dava mais conta de lembrar das caras e dos nomes.
Na minha escola já tinha esse tipo de diversão; todo dia era gente nova. No primeiro ano, a cada 2 meses construíam salas novas, de madeira, sobre estacas que apoiavam o assoalho de tabua. Pintavam por fora de rosa ou azul, essas cores que fazem com corante e cal.
Eu mudei p/ umas dessas salas novas, numa escola que já tinha 4 salas de alvenaria. A minha sala era chamada de galinheiro pelos que estavam nas salas de tijolos. Eu nem ligava pq mudei da primeira para a segunda série em menos de um mês, e adorava minha nova professora, Emília.
Meu sonho era ter uma bicicleta e um relógio citizen. Me apaixonei (platonicamente) pelo garoto que tinha os dois. Aqui cabe uma adendo p/ q me dêem razão pela paixão. Ele era mais velho; era cigano, por isso estava atrasado na escola. Tinha cabelos lisos e longos, com uma
uma franja q caía nos olhos, meio de lado. Usava jeans US Top (os outros guris usavam shorts. Na hora do intervalo ele pegava a bicicleta, q ficava estacionada debaixo da janela da sala, impulsionava a bicicleta com uma perna e só qndo estava em movimento passava a outra perna
Eu ia para a janela todos os dias para ver esse espetáculo. Escrevia seu nome - Lolha - nos meus cadernos e toda noite lhe dava boa noite imaginário. Estávamos na 2 série. Estudamos juntos até a 6, eu nunca falei com ele. Na 7 ele parou de estudar p/ ajudar a familia rica.
Eles eram donos do cinema. Eu ia lá quando podia. Ele continuava a ir à escola - q ficava em frente ao cinema - p/ paquerar; era o galã. Só prestou atenção em mim qdo eu tinha 14 anos. Aí eu já era linda e tava apoixanada por outro.
Sobre essa época, tenho duas lembranças muito tristes:
- eu tinha 8 anos. Vivia andando para conhecer as pessoas que chegavam. Ia à casa dos vizinhos ver se precisavam de algo. Na casa em frente à minha. Ainda menor que a nossa. Pequena mesmo, no meio de um quintal grande. +
morava uma moça com um filho de recém nascido. O marido era agricultor (os agricultores iam derrubar a mata e demoravam até meses p/voltar p/ casa). Eu sempre ia lá conversar, ela era muito só. Minha mãe não gostava de vizinhos, então ei ia escondida. Um dia cheguei e +
ela estava sentada na beira da cama, os olhos no nada. O bebê deitado no centro, quietinho. Cheguei perto, ela chorava já sem lágrimas. O bebê tinha morrido de sarampo. Fiquei velando o corpinho com ela. Nem tinha caixão. Eramos só nós duas no velório. Não vi qdo levaram para +
enterrar. Tive q voltar para casa. Fiquei horas lá, naquele velório silencioso e solitário. Nunca esqueci.
A outra lembrança, de um poupc antes ou um pouco depois - não sei ao certo - o vizinho da casa ao lado, da minha idade, teve miningite. Eram maia pobres que nós, não existia SUS e o posto de saúde do governo não tinha estrutura para aquilo. Ele chorou por horas. Depois gritou +
por toda a madrugada. Eram gritos horríveis, de uma dor que até eu podia sentir. Entre os gritos, os soluços dos pais. Ao amanhecer ele tinha parado de gritar. Não sei bem q horas parou. Insistinpara minha mãe ir lá, todos estavamos proibidos pq era contagioso.
Ela soube, então, pela cerca se madeira, que ele havia morrido. Morreu sem atendimento. Ouvi as vizinhas dizendo que a cabeça rachou por causa da miningite. Minha mãe tentou desacreditar essa informação, mas eu nunca esqueci. Os pais foram embora para o sitio depois do enterro.
Alguém aqui falou em banho de chuva, então lá vem mais memória:
- já disse q lá chovia por 6 meses (parece um livro de Garcia Marquez). Ao lado de minha casa tinha uma rua e depois da rua, mata fechada. A rua era de terra, a enxurrada cavava uma vala nas laterais. +
Nas tardes de chuva forte, corríamos nas valas, contra a enxurrada forte, a lama vermelha batia na altura do peito. Um dia desequilibrei e rolei corredeira abaixo, os meninos correndo ao lado tentando me ajudar, até q trombei num tronco q descia e parei, toda roxa e ralada.
Nessas fotos a cidade já tinha “desenvovido”. Minha mãe, a grávida, inso trabalhar. O caminho era esse aí, no meio da mata. A Prefeitura, um dos 5 predios de tijolos. Esses postes na minha rua chegaram em 79, mas só tinha luz das 17:00 às 22:00.
Nessa foto das casinhas, a mata que falei que divisava xom minha casa, é aquela lá no fundo. Mata fechada, virgem.
Vamos ao início. Era janeiro. Estávamos no interior, no sertão baiano, na casa de minha tataravó - os motivos pq fomos parar lá ficam para outro fio. Meu pai chegou p/buscar minha mãe, tinha q pegar naquele dia p/ um lugar na Amazonia; estavam contratando no INCRA. Foram.
Dias depois meu pai voltou. Precisava dividir os 4 filhos entre os parentes. Eu fui a escolhida p/ ficar com seu irmão. Viajamos por 700 KM, nós. Na cidade de meu tio, era carnaval. Meu pai me levou p/ festa, me pôs em seus ombros. Ali de cima, senti q o mundo podia ser meu.
Quando acordei no dia seguinte, ele tinha partido. Morri um pouco ali. Eu tinha 6 anos. Em junho fiz 7. Todos os dias, da manhã à noite, esperei ele voltar. E eu cuidava que os dias fossem intermináveis; acordava muito cedo e tinha insônia à noite. Dia 22 de outubro ele voltou.
Chegou à tardinha. Eu sempre soube q seria à tardinha - não sei o motivo. Saímos na manhã do dia 23/10, viajamos todo o dia e chegamos na minha vó. Pegamos 2 irmãos e, no dia 24/10 pegamos a estrada, rumo a nosso destino no Norte. Minha irmã focou p/ trás.
Atravessamos a Bahia, o centro oeste e chegamos no MT, que ainda nao era dividido. E começou a jornada. Tínhamos viajado quase sem parar, meu pai sabia o q nos esperava. Era importante não perder tempo, as chuvas já haviam começado no Norte. Mas também começou uma jornada linda.
Meu pai tinha uma CD 10. Na carroceria estav, sob uma lona, a nossa mudança ou o que pai achou que era relevante levar. Eu achava que lá atrás estavam as bicicletinhas q eu e meu irmão tínhamos ganhado no Natal anterior sem chance de usar até então,e isso me enchia de felicidade.
Eu quase nao dormia durante a viagem, ao contrário dos meus irmãos, q sentiam sono com o calor e a monotonia da estrada. Eu não. Eu ia perguntando tudo a meu pai. Ele sempre adorou conversar comigo e era a única pessoa no mundo que me chamava de thici. Entramos no cerrado.
Meu pai me disse para ficar atenta q a qualquer hora veria uma ema - acho que foi para me calar um pouco. Prestei atenção, quietinha, em tudo. Um tempo depois surgiram, não uma ema, mas várias. Meu pai parou, acordou meus irmãos e ficamos olhando elas passarem.
O céu estava vermelho. Era uma mistura se sol e poeira. Tudo era sépia. Nós, em silêncio, olhando as emas. Ali também me denti dona do mundo.
Os dias seguintes foram de atoleiros, dormindo no carro, comendo a comida q pai levou, parados horas atrás de filas de caminhões atolados, famílias juntas nos caminhões “pau de arara” indo p/ o mesmo lugar q nós. Pouco falávamos com as pessoas.
Dia 30/10 chegamos.
Chegamos no meio do dia. Descobri que havia outro motivo para a pressa de meu pai; minha mãe ia dar à luz à minha irmã caçula. Chegamos atrasados, ela já havia nascido pela manhã. Minha mãe retardou o parto o quanto pôdeDia 30 era a data limite. Era importante retardar.
Ela não estava só esperando meu pai chegar, mas também a construção do hospital - um prédio de alvenaria, com quartos e 2 enfermarias de 4 leitos cada. Então minha irmã foi a primeira cesariana do hospital. O hospital parecia aqueles de filme aobre a África.
A luz elétrica era só p/ o centro cirúrgico e equipamentos, as janelas ficavam abertas por causa do calor sufocante e eram baixas, davam para a rua. Não raro alguém da rua botava a cara na janela e ficava olhando o doente. O quarto de minha mãe era uma atração à parte pq não
tinha doença, era um bebê que tinha nascido e minha mãe, zelosa como ninguém, tinha feito um enxoval q não era visto por ali. Bom, ele teve 9 meses para costurar e bordar, enquanto chorava por estar longe dos outros filhos e naquele lugar esquecido do mundo.
Foi a primeira visão que tive de minha mãe depois de 9 meses; pela janela do quarto do hospital. Havia um mosquiteiro sobre a cama, mas ela não usava - lhe sufocava, dizia. Eu nunca tinha visto um mosquiteiro, achei q era uma coisa linda, depois descobri q tbm me sufocava.
Vi minha mãe, ela nos viu e pensei q ela fosse morrer de tanto q chorava. Chorava por estarmos ali e chorava pq o choro lhe doía a cesárea. Tivemos q atravessar p/ entrar no hospital pela porta e, de lá, p/ a porta de minha mãe. Foi mais longo q da Bahia até àquela janela.
Só vi minha irmã depois q abracei minha mãe. Estava sob o mosquiteiro, no bercinho, numa roupinha branca com bordados azul-marinho e vermelho. Tudo era daquele azul e vermelho: a cesta, a sacola, as tampas dos potinhos. Minha mãe era dessas lindezas.Esqueci da bicicletinha.
Àquela época ficava no hospital por uns 4/5 dias, no caso de cesárea. Minha mãe saiu antes pq precisavam do quarto, eram só 2 no hospital. Em casa, começamos uma vida toda nova para mim. A luz era de candeeiro e lampião a querosene, só muito tempo depois tivemos um a gás.
O banheiro era no quintal e não tinha chuveiro. A água tirada do poço - é a aqueles sarilhos que devo meus braços de boxeadora. A casa era de madeira matajuntada, com taramelas nas portas e janelas, tudo das mesmas tàbuas, da paredes ao assoalho, esse ficava sobre estacas.
Eu odiava esse assoalho. As estacas eram suspensas uns 50/60 cm do chão e cabia a mim - menor - varrer lá embaixo. Talvez daí venha minha claustrofobia, quem sabe.
Tbm cabia a mim passar as fraldas de minha irmã: eu colocava a brasa no ferro, subia num banco e passava na mesa.
Era importante não assoprar as brasas enquanto passava a roupa, ou sujava tudo de cinzas e, com certeza, levaria cascudos por isso. Nem preciso dizer q me queimei várias vezes nessa operação. Eu tinha 7 anos e o
ferro pesava uns 2 kg. Aprendi a cozinhar nessa época.
Qdo minha mãe chegou do hospital, meu pai abriu a lona da carroceria. Ele não tinha levado as bicicletinhas. Era pouco espaço, precisou escolher bem o que levar. Ele colocou na mudança a porcelana de minha mãe - um aparelho completo; o enxoval bordado à mão por minha tataravó;
o faqueiro - caro, vistoso, numa caixa de madeira forrada de veludo; algumas panelas, outras louças, livros - de Camões a Adelaide Carrara e os livros da faculdade de Direito de minha mãe. Levou também algumas bonecas, brinquedos e jogos de tabuleiro. A escolha de meu pai sobre
o que levar na mudança foi muito simbólica. Ao levar o enxoval fino, a porcelana e a prataria ele queria nos lembrar que a nossa pobreza atual não nos fazia miseráveis. Era sua forma de dar dignidade àquela transformação. Os livros de Direito de minha mãe, esses eram um
orgulho à parte p/ meu pai. Conhecera minha mãe qdo ela tinha 14 anos, se casaram qdo ela fez 15. Uma setarneja linda e muito pobre, cheia de força e coragem q entrou na faculdade de Direito no início dos anos 70 com 4 filhos pequenos. Os outros livros, ele não podia viver sem.
A morte estava sempre presente. Morria-se de tudo. Malária era a causa mais comum. As mais chocantes eram de acidentes em derrubadas e os assassinatos por grilagem de terra. Eu sempre tive medo de morto, insone a vida toda por medo dos mortos. Mas uma vez tive medo da morte:
Meu irmão mais novo q eu - sou a do meio, de 5 -, estava com malária. Acho que eu tinha 9/10 anos. Tratávamos em casa mesmo. Dessa vez, cheguei da escola e ele tinha ido p/ o hospital. Estranhei. Fui ver. Qdo cheguei no leito, meu irmão estava verde -malária faz isso, os olhos
apagados, nenhum ruído saía de seu corpo, nenhum movimento. Apenas um corpo verde e coberto de suor. Não havia vida. Tive muito medo da morte naquela hora, podia sentir que estava ali. Foi uma noite longa. Não arredei o pé. Pela manhã ele estava melhor - malária tbm tem disso.
Esse meu irmão, Lelo, era difícil ver assim. Nasceu com 5,250 kg e 57 cm (meus pais adoravam contar como ele encantou todo o hospital ao nascer rosado e de cachos louros, um touro de forte). Eu devo ter nascido bem minguada; ninguém contava nada sobre o dia q nasci.
Do meu primeiro ano só sei q tive pernas cambotas e que tataravoinha me “pilou” em 6 sexta-feiras, às 6 da tarde. Minha vó que contava( não a tataravó, a vó mesmo. Ela tbm dizia que era sabida e ligeira como um curisco, mas vó tem dessas coisas de aumentar nos elogios.
Voltemos a Lelo. Mais novo q eu, era sempre maior. Muito maior. Comia muito mais também. Estava sempre emburrado por causa de comida. Minha tataravó guardava pão no saco de farinha p/ ele comer qdo quisesse. No Norte não tinha quem guardasse pão p/ ele, mas tbm não tinha pão.
Isso me lembrou q meu pai levou minha lancheira na mudança. Era ovalada, forrada de um plástico marrom com bolinhas rosas, a garrrafinha tinha a tampa rosa. Foi um desperdício de espaço, não havia o que por na lancheira, o que me obrigava a comer a merenda da escola.
Comer é modo de dizer, assim como merenda. Eu odiava, exceto nos dias de festa q serviam pão com carne moída e vc podia comer mais de um. Nos outros dias eram coisas medonhas, em especial uma gosma com gosto de banana e aveia e chiclete, servida 2 vezes por semana. Eu não comia.
Tinha uma sopa q não sei do q era. A salvação era o dia do arroz doce e o do achocolatado. Quem podia, nunca comia aquilo. O Lolha nunca comeu. Era rico, comprava lanche na cantina ou ia, de bicicleta, na casa dele, q era em frente à escola. A cantina quase não tinha nada mesmo.
Nosso primeiro ano lá foi muito difícil. Os outros q se seguiram também. Mas íamos nos acostumando às dificuldades, ajustando o que dava. De modo que o primeiro pareceu sempre o pior. Minha mãe chorava sem parar, tanto por minha irmã q tinha ficado p/ trás como por estarmos lá.
Para ela, ver os filhos ali, diminuía as esperanças de ir embora, de voltar à Bahia. Se queixava da falta do mar, da luz, da família, da falta de tudo. Eu achava q ela nunca ia parar de chorar. Mas parou. Ela dizia q as lágrimas secaram, mas q continuava chorando. Uma tristeza.
Nesse primeiro ano eu tbm aprendi a cozinhar. Eu amo cozinhar, mas àquela eu época eu preferia brincar. De tudo, o q menos gostava era matar os bichos. Eu tinha pena e odiava o cheiro de sangue. Minha mãe dizia q a galinha demorava a morrer pq eu tinha pena, aí eu tinha remorso.
Depois de matar, tinha q pelar. Aquilo era uma tortura. Eu não tinha escolha. Pulemos essa parte.
A dificuldade não parava aí.
O abastecimento de gás não era regular, os caminhões ficavam nos atoleiros e precisávamos usar lenha. Lavar as panelas sujas de carvão não era moleza.
Minha mãe, no meio a tantas privações, ia ficando cada vez mais rigorosa e exigente. Limpeza e organização eram de rigor espartano lá em casa. Ela tentava manter a dignidade, tentava diminuir os sinais da pobreza. A mesa era sempre bem posta e todos comíamos juntos. Era lei.
A poeira vermelha tornava impossível manter os lençóis tão brancos. Ela tingiu de amarelo os mais simples. Por mais q tentasse, a realidade vencia sempre. E as coisas iam ficando feias à medida que o tempo passava. Tudo q vinha novo era mais simples, menos bonito.
Eu não gostava das noites. Eram tristes. Ruas escuras. As janelas com a luzes fracas de lamparinas ou lampiões. Era silencioso. Dormia-se cedo. Nos fins de semana melhorava, sempre tinha uma visita, uma casa para ir, adultos conversando. Eu adorava ouvir os adultos.
Eu preferia os dias que íamos para a roça. Lá a solidão não era forçada, ninguém era obrigado a ficar cada um na sua casa, era só sua casa e pronto. Por mim, ficava na roça para sempre. E sempre tinha festa na roça. Tudo era motivo p/ uma fogueira. A comida era carne de caça.
Os homens entravam na mata à noite p/ caçar bicho grande. Eu só aprendi a caçar dentro da mata, aos 14/15 anos. Pescar aprendi cedo, por volta dos 8/9 anos. Era preciso saber fazer tudo.
Viver num lugar pequeno e remoto potencializa tudo, principalmente as crendices.
Em 78, ainda sem luz elétrica, a Igreja era o maior evento social, qualquer q fosse a religião. E as crenças eram aguçadas. Ne cenário, a vizinha, um ano mais velha q eu, adoeceu. Era minha amiga.
A família muito católica, se reunia para ler a Bíblia. Acho q eram uns 8 filhos. Na minha casa nem tinha Bíblia. A doença da menina logo ganhou ares religiosos. Quando li “Do amor e outros demônios”, achei q Garcia Marquez bem podia ter se inspirado na minha amiga.
A vizinha, diferente do livro, não foi mordida por um cachorro, nem tinha nenhuma doença física aparente. Apenas foi adoecendo. Foi ficando triste e pálida, deixou de ir para a escola, já não brincava no quintal comigo. E as histórias em volta da doença dela foram aumentando.
Em pouco tempo a doença já era dada como possessão. Meu pai, a tudo isso torcia o bico e atribuía os relatos a coisas de ignorante. Pelo sim, pelo não, me proibiu de ir à casa dela. Não adiantou muito, ouvíamos os gritos lá em casa. Iniciaram o exorcismo. Isso causou
um desconforto na família. Rápido se mudaram para o sítio e nunca fiquei sabendo como acabou a história da possessão. No fim, o episódio contribuiu para agravar minha insônia.
Passados 14 meses desde q cheguei, viajamos à Bahia p/ buscar minha irmã. Ela tinha 12 anos, quase 13. Minha mãe não a via há 2. Meu pai, temeroso q minha mãe não voltasse, queria q levasse só os filhos menores. Ela se negou, disse q nunca mais largava filho p/ trás.
Fomos e voltamos todos. A viagem foi uma odisséia. Fizemos uma parada em SP na ida e na volta, foi a primeira vez q pisei em São Paulo. Voltamos de avião (economias de minha mãe), a partir de SP. Isso me rendeu bastante popularidade qdo voltei. Minha irmã odiou o Norte.
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