Thread by @louverture1984

Tenho muito pouco para falar sobre a situação do racismo contra """orientais""" no Brasil. Mas nosso país, ao contrário dos Estados Unidos (em especial da Califórnia), não passou por um processo de transição de mão-de-obra da escravidão negra para os coolies chineses.

Contudo, não é como se a nossa elite brasileira não tivesse tido essa ideia. Vejam "Onda negra, medo branco", de Celia de Azevedo, de onde tiro a maioria das informações aqui.

Em 1879, quando a escravidão e a monarquia ainda perduravam, deputados discutiam no Parlamento a adoção de um fundo para trazer mil trabalhadores chineses para São Paulo. A ideia era pensar num sistema de substituição da mão-de-obra no Brasil, como bem se sabe.

Como funcionaria essa migração? O governo criaria um fundo público e beneficiaria contratantes particulares. Como a Ásia era muito distante, as agências e contratantes falavam que iam também para os EUA, trazer os "asiáticos" de lá. Tráfico humano e mamata. Puro suco de Brasil.

Contudo, o custo era alto e o governo barrou a iniciativa dos parlamentares. Ou seja, seria preciso readequar os custos - e nesse meio tempo, alguns parlamentares se sentiram à vontade para falar. O deputado Camilo de Andrade, por exemplo, referiu-se aos chineses...

...como "poltrão, venal, traiçoeiro, vingativo e amante de Baco", além de serem "polígamos" e "agricultores primitivos".

Outro deputado, Costa Jr., dissera que os chineses eram "refratários à civilização do Ocidente", "egoísta" e mero "instrumento transitório de trabalho".

Camilo de Andrade, por sua vez, falou que a cozinha chinesa nada mais era do que selvageria, enumerando o consumo de gatos, ratos, sapos, aranhas, larvas, lagartas e ovos com pintinho dentro (aliás, leiam o texto da @_pinheira sobre a China que saiu no Intercept).

Os críticos do projeto chegaram à conclusão de que os "chim" (o que incluía chineses, japoneses, malaios, coreanos etc.) eram uma "raça" de selvagens e que seria péssimo, para o Brasil, receber tais trabalhadores em suas terras.

Assim, parte da elite brasileira, desesperada por embranquecimento, não aceitara a migração de """orientais""" - em última instância, eles não eram brancos/civilizados o suficiente para o seu projeto político nacional.

Mas outra parte da elite discordava.

Para eles, os chineses não poderiam ser igualados aos negros. O deputado Inglês de Souza, ardoroso defensor do projeto, falou na tribuna em 1880: "Um país que, muito antes que se desenvolvesse a civilização do Ocidente, havia criado uma civilização sua, embora hoje inferior à...

...nossa, mas em todo o caso, prodigiosa para aqueles tempos (...) não pode ser de forma alguma ser comparado ao hotentote bruto, ao zulu ou a outro qualquer povo africano. (...) Pasma que se venha dizer nesta casa que o chim é tão inteligente como o escravo, como o negro que...

...erra nos areais da África, sem vida social, sem instituições de liberdade, sem mesmo governo regularmente constituído!"

Na queda de braço, os críticos ganharam, mas pelo argumento do custo de importação da mão-de-obra chinesa.

Jeffrey Lesser chega a afirmar que algumas companhias de comércio chegaram a se firmar, uma delas em São João Del Rei, em 1882 - e que inclusive trouxe para o Brasil mil chineses, dos quais sabemos muito pouco. Mas a verdade é que a migração chinesa foi pequena...

(ao menos se compararmos com a diáspora chinesa nos EUA, que chegou a cifra de 100 mil pessoas no final do século XIX). No frigir dos ovos, a migração japonesa acabou sendo mais utilizada.

Mas recebidos somente no início do século XX e concentrados em São Paulo e Paraná, as...

...famílias japonesas firmaram colônias e não foram determinantes para a mão-de-obra cafeeira. A perseguição posterior, contudo, não pode ser minimizada. Em tempos de guerra, campos de concentração foram feitos para "súditos do Eixo" e japoneses foram inclusive impedidos de...

...entrar no Brasil.

Todavia, em 1947 o nipo-brasileiro Yukishige Tamura foi eleito vereador em São Paulo (numa época em que japoneses não podiam votar inclusive), as propriedades confiscadas na guerra foram retomadas e um dos membros da comunidade nikkei inclusive se...

...tornou ministro da ditadura militar, Fábio Yassuda.

Encaminhando para o final do fio, o que eu quero dizer com isso tudo? Bom, basicamente que quem define a "raça" geralmente é o sujeito que constrói essa hierarquia - e na esmagadora maioria das vezes, ele é branco.

De acordo com essa pequena história das migrações chinesa e japonesa, dá para inferir que a branquitude do asiático é sempre ligada aos interesses de quem já está ocupando o espaço do "branco". E esses interesses mudam conforme a época histórica.

Alguém pode eventualmente dizer que o mesmo aconteceu com homens e mulheres negras ao longo da história brasileira, mas considerando novamente o contexto histórico, seria bom analisar isso caso a caso antes de ser taxativo. As estratégias de racialização da branquitude...

...no país que vivenciou mais de 300 anos de escravidão atlântica de povos africanos e afro-brasileiros, parece inevitável dizer que elas foram elaboradas para delimitar a cidadania, os corpos e a própria vida de homens e mulheres negras (mesmo que não se restrinja só a eles).

Enfim, a treta pode ter sido mal colocada, mas é um debate importante para ser feito e não pode simplesmente virar token para youtuber ganhar visualização no seu canal. Tem muita coisa a discutir a partir daí.