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Como prometido, hoje vamos falar sobre testes clínicos. Como são feitos, quando são confiáveis, por que alguns testes falam que a tal remédio mata o vírus e outros dizem que ainda é cedo para saber... Essas e outras dúvidas, vamos discutir aqui! Imagem com uma máscara, seringa, alguns comprimidos e o cantinho de uma placa de Petri. Foto por Anna Shvets.
Muito bem, primeiro, a pergunta que não quer calar: em testes de laboratório, não só a cloroquina, como outros medicamentos demonstraram que matam o vírus. Por que não damos essa controvérsia por encerrada aqui mesmo? Então...
Quando precisamos comprovar um medicamento novo, uma série de testes precisam ser feitos. O medicamento pode passar em todos os testes e falhar bem no último. Se for o caso, jamais chegará no mercado. É o destino de boa parte dos medicamentos.
Esses testes se chamam ensaios clínicos, sendo que antes de serem feitos, tem a fase pré-clínica. Ensaios clínicos acontecem em quatro fases, e o medicamento só é considerado aprovado para uso humano se ele for aprovado nas quatro fases.
As fases são: 0 – Pré-clínica (animais), I – Usos preliminares em seres humanos saudáveis (20 a 100 pessoas), II – Testes-piloto em doentes (100 a 300 pessoas), III – Testes extensos em doentes (5 a 10 MIL pessoas) e IV – Acompanhamento do uso (após a liberação).
Esses testes são vitais para evitarmos desastres que já ocorreram no passado. Para cada história de sucesso de um pesquisador salvando o próprio filho com um remédio experimental, tem milhares de tragédias, como as vítimas da Talidomida (pesquise!).
Vou explicar as fases dando o exemplo da cloroquina e outros medicamentos que estão sendo pesquisados contra a Covid-19, OK? Mas esse protocolo serve para qualquer tipo de medicamento novo entrar no mercado.
Antes de entrarem em ensaios clínicos, que são caros e demorados, é preciso que os pesquisadores saibam do potencial do medicamento contra aquela doença. Então, antes da Fase 0, em animais, tem uma fase feita em bancada, que é a Fase In Vitro (“no vidro”). Duas mãos circundando uma placa de Petri. Foto de Anna Shvets.
Na fase in vitro, você cultiva uma amostra de células em um pratinho de vidro, infecta as células com o micróbio, no caso, o SARS-CoV-2. Daí, você joga um monte de remédios em dosagens variadas e vê quais matam os vírus. A cloroquina e outros compostos passaram nesse teste.
Outra coisa importante é que a fase in vitro precisa deixar claro para os pesquisadores como o medicamento funciona no ataque à doença, para já terem uma ideia se vai ser seguro ou não.
Por fim, tem o fato de que nosso corpo é bem mais do que um punhado de células. Não adianta o remédio funcionar in vitro se a dose dele que matou o vírus nesse teste seria letal ou muito prejudicial a nós.
Fora que o corpo é um ambiente diferente. É impossível copiar exatamente as condições em que as células infectadas estarão dentro de nós. O teste in vitro é vital para focar os esforços, mas é só o começo.
Foi nessa fase que a cloroquina tinha “passado” quando começou o rebuliço em torno dela. Mas justamente porque ela é aquele cão chupando manga que eu falei na outra thread, alguns pesquisadores a deixaram de lado em favor da hidroxicloroquina.
Aliás, na outra thread, eu não falei muito da hidroxicloroquina porque só consegui informações de mais qualidade sobre ela depois que encerrei os tweets. Ela é bem similar à cloroquina, mas tem várias vantagens. Estrutura química da hidroxicloroquina.
Para começar, ela tem efeitos colaterais bem mais brandos, mas ainda presentes se a pessoa se automedicar e abusar da dose, o que aliás, vale para qualquer remédio. Eles não são poções milagrosas. Eles podem te matar tão facilmente quanto um vírus. OK?
Sem contar que passar na fase in vitro é só o começo. Antes de comprar um estoque de hidroxicloroquina, continue lendo e entenda por que ainda não ficou confirmado que ela é um tratamento viável e o que falta para isso.
Terminados os ensaios in vitro, com os remédios que “venceram” esse primeiro teste, nós vamos para ensaios in vivo (“nos vivos”), que começa com os ensaios pré-clínicos (Fase 0), de testes em animais. Os testes duram de 2 semanas a 11 meses. Ratinho branco bem pequeno na mão de um pesquisador. Foto de Pixabay.
No Brasil, o protocolo é fazer os testes em três espécies de animais, com pelo menos uma não-roedora, para termos uma variedade maior de corpos. Obviamente, nosso corpo é diferente, mas se um medicamento é um veneno horrível, temos que saber o quanto antes.
A Fase 0 serve para termos uma boa certeza (embora não 100%) de que o medicamento não é tóxico assim que cai no corpo, não é tóxico se acumular com o uso, não causa má-formação em embriões e fetos, não causa câncer, não vicia, etc.
No caso da Covid-19, a gente não está com muito tempo de testar compostos novos, então os testes foram feitos com medicamentos que já são utilizados em humanos, o que pode descartar a Fase 0.
Isso feito, passamos à Fase I, que é feita com poucas pessoas (20 a 100), e é uma das mais arriscadas para os participantes. É nessa fase que os medicamentos têm que provar que são seguros para humanos também. Alguns falham nessa fase, devido a particularidades do nosso corpo.
Uma Fase I bem feita deverá ter pessoas de várias idades e várias condições físicas, e deverá dar uma boa noção de qual a dose suportada pelos seres humanos e como esse medicamento interage com outros medicamentos, com o uso do álcool, alimentação, etc.
Essa fase leva de semanas a poucos meses, para dar tempo dos efeitos colaterais se manifestarem. Se ficou bem claro que os medicamentos são seguros para uso humano, aí sim é que será testado se eles realmente curam o que prometem curar.
Percebam quanto trabalho só para chegar nessa fase. É por isso que pesquisadores ficam muito felizes quando medicamentos já testados como seguros para uso humano têm potencial contra novas doenças. Eles podem pular ou encurtar bem as Fases 0 e I.
Muito bem, digamos que as Fases 0 e I foram puladas para a hidroxicloroquina e os outros medicamentos, por só usarem doses seguras e já testadas. Agora é a hora do primeiro teste de cura de verdade: a Fase II. Bandeja com vários frascos de remédio ao lado de um médico escrevendo algo em um papel.
Nessa fase, são necessárias de 100 a 300 pessoas, em média. Por que isso tudo? Para garantir que pessoas sortudas não estraguem tudo.
Espera, o quê?
Veja bem, pessoas diferentes têm corpos diferentes. Algumas abençoadas nasceram com corpos que são uma máquina assassina de micro-organismos. Elas vão se curar em tempo recorde de qualquer doença, sozinhas ou com doses mínimas de medicamentos.
Outras pessoas se beneficiam de maneira assombrosa de placebos: substâncias comuns (água, farinha, açúcar) que são dadas a elas como se fosse remédio. Sim, as pessoas acham que estão tomando remédio e se curam como se tivessem tomado mesmo.
Agora, imagine que você está fazendo um teste num grupo de, digamos, 20 pessoas. Cada pessoa corresponde a 5% do total. Se você deu o azar de pegar dois sortudos com um supersistema imunológico e 4 sortudos que se curaram com os placebos na sua amostra... Desenho de um quadrado dividido em 20 partes, 6 coloridas. Legenda: 6 pacientes em 20.
...isso dá um percentual de cura de 30%. Isso é quase um paciente curado de cada três. Isso é muita coisa. O remédio fica parecendo bem eficaz. Porém... Digamos que esse estudo seja feito com 100 pessoas. A chance de aparecer um número desproporcional de sortudos é menor. Quadrado dividido em 100 partes, com 9 coloridas. Legenda: 9 pacientes em 100.
Sem contar que cada pessoa, nesse estudo, vai corresponder a 1%. Sendo assim, digamos que você fique com os 6 sortudos originais e apareçam mais uns dois ou três. Esses sortudos que se curaram sozinhos vão ser só 9% do total (não dando nem uma cura a cada dez). Imagens dos dois tweets anteriores, lado a lado.
Já começa a ficar claro que o medicamento não está fazendo nada. Se você aumenta amostra e a porcentagem de cura cai, é só porque os sortudos estão se “diluindo” nas pessoas normais. Se o medicamento funcionasse, deveria haver cerca de 30 curados.
Uma forma de tentar tirar o efeito dos “sortudos” é pegar sua amostra e dividir em dois ou três grupos, para fazer um teste controlado. Ele tem esse nome porque vai usar grupos de controle.
É um jeito de se saber qual a porcentagem de “sortudos que se curam rápido” na população. Em sua forma mais simples, você tem um Grupo A que recebeu o remédio e um Grupo B que recebeu um placebo (comprimido de farinha).
Se o seu remédio do Grupo A não consegue curar mais gente que o Grupo B (que é só farinha), então seu remédio não funciona, ou não funciona o bastante para ser melhor que só dar uma balinha pro paciente e chamar de comprimido. Sendo que a balinha não tem efeito colateral.
Uma forma de garantir bons testes controlados é escolher sua amostra o mais aleatoriamente possível, com várias idades, várias gravidades da doença, várias condições físicas e psicológicas. Isso é um teste aleatorizado, ou randomizado.
Outra forma é fazer o teste em regime de duplo-cego: as pílulas reais e os placebos recebem rótulos e são misturados aleatoriamente, de forma que nem o pesquisador e nem o paciente sabem quem está tomando remédio ou placebo antes do fim da pesquisa.
Esses dois métodos fazem com que o médico não escolha só pessoas jovens e fortes que têm mais chance de melhorarem sozinhas, nem que trate melhor os pacientes que não estão usando placebo para aumentar as chances deles.
Se o medicamento passa da Fase II, ele está num bom caminho. Para ser liberado, ele tem que passar da Fase III, que é basicamente a II, mas com muito mais gente (5 a 10 mil pessoas, por baixo).
Ela é necessária porque, em uma amostra de 100 a 300 pessoas, ainda é arriscado ter muitos sortudos atrapalhando os testes, e tem menos condições aleatórias envolvidas. Num teste gigante, em tese, tudo que pode dar errado, vai dar.
E os sortudos vão importar bem menos, porque, num teste de 5 mil pessoas, você precisa de 50 pessoas pra dar 1%. Às vezes, os 9% de sortudos da Fase II podem despencar pra 1% ou menos. Mas a eficácia do remédio também pode baixar.
Só então um medicamento é liberado, e ainda assim, ele tem que passar pela Fase IV, que é um acompanhamento de como as pessoas estão reagindo a ele, agora que está no mercado. Se efeitos não previstos antes surgirem, o medicamento pode ser recolhido.
Como vocês podem imaginar, essas fases todas são demoradas, trabalhadas e muito caras. Não é algo que se faça em um ou dois meses, portanto, é preciso que sejam feitas com rigor. Estamos falando de vidas humanas em jogo, aqui.
Até agora, as pesquisas da hidroxicloroquina contra a Covid-19 in vivo usaram menos pacientes que a Fase I, que é a fase preliminar.O estudo que fez o Trump dar pulos de alegria tinha sido feito com cerca de 30 pessoas. Só 30! Estudos de Fase II (comprovação) pedem NO MÍNIMO 100.
Nesse estudo, os pacientes não foram aleatorizados. Não temos aquela garantia de idades e condições diferentes. Também não foi usado qualquer tipo de controle. Como saber quem são os sortudos? Como saber se é outra coisa que está causando as curas?
Além do mais, a taxa de cura dos pacientes foi de 75%, quando sabemos que 80% dos casos de Covid-17 são casos brandos que não evoluem para a pneumonia. O médico diz que as pessoas foram curadas mais rápido que o normal, mas... e os sortudos? Imagem mostrando as taxas de recuperação dos pacientes de Covid-19 e a taxa da gravidade dos casos.
O médico que fez esse estudo já publicou outro “confirmando” a eficácia em um grupo de 80 pessoas. Mas, de novo, sem grupo de controle, e nenhum outro mecanismo que dispense o uso de um grupo de controle (existem alguns, como tratar milhares de pessoas e monitorar internações).
De novo, a taxa de cura foi 80%, que é a taxa de cura normal do vírus, e não se fez grupo de controle com os pacientes graves, por razões óbvias (eles estão sob risco de vida, não é ético negar tratamento ou dar placebo para se fazer um grupo de controle).
O estudo chinês que não apontou diferença entre usar hidroxicloroquina e não fazer tratamento nenhum também foi feito com cerca de 30 pessoas, aleatórias, mas sem grupo de controle. Outro grupo mínimo, e que não leva em conta os azarados.
O fato é que é muito cedo. Eu entendo que os cientistas estejam afoitos para achar uma cura. Eu entendo que o cientista francês por trás dos estudos da hidroxicloroquina queira salvar vidas o mais rápido possível. Não quero mal a ele, nem a ninguém com esperanças nessa cura.
Mas antes de termos testes sérios, aleatórios e controlados em quantidades significativas (mais de 100 pessoas, com um bom grupo de controle e tudo), é cedo para comemorar. Só faz as coisas mais trágicas se não der em nada, e conhecendo pesquisas médicas, é possível.
Para não terminar essa thread de uma forma muito deprimente, saibam que há outros medicamentos promissores sendo pesquisados, e, no fim, podem se provar bem melhores que a hidroxicloroquina.
O favipiravir, do Japão, é um anti-influenza, e a epidemia no Japão está mais controlada, então há otimismo em relação a ele. Tem outro antiviral, o remdesivir, na roda também, assim como uns 50 outros compostos. A hidroxicloroquina está longe de ser nossa única esperança.
Ah, e estudos com centenas de pacientes já estão sendo feitos na França. Essa entrevista com um médico francês tem um bom balanço de prudência e otimismo, para quem lê inglês: medscape.com/viewarticle/92…
Outro documento animador (esse aberto, mas em inglês) é uma revisão bibliográfica com os artigos publicados até agora sobre tratamentos e vacinas da Covid-19, assim como mecanismos da doença e outros detalhes. Se você é da área da saúde, é interessante: pubs.acs.org/doi/10.1021/ac…
Pesquisadores do mundo todo estão fazendo os testes de forma organizada e consciente, mesmo que demore um pouco mais. Calma, pessoal. Respostas chegarão. Por ora, vamos continuar em casa, e tomar as medidas necessárias.
No mais, é isso. Fiquem seguros, não façam a taxa de contaminação sair de controle antes de uma cura real estar confirmada e testada e, acima de tudo, não desabasteçam farmácias de remédios essenciais antes mesmo de termos certeza se funcionam ou não.
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